Revista Philomatica

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Literatura pra quê?


Você já ouviu especialistas dizerem que comida boa é aquela que você retira da terra e não da prateleira do supermercado, é aquela que você descasca e não a que você desembala? Parece o óbvio não é mesmo? Mas, mesmo assim a maioria insiste em desembalar e ter overdoses de sódio ao consumir miojo e outras porcarias como o leite, cuja validade ultrapassa um ano naquela caixinha projetada pela indústria, em que sequer a soda cáustica misturada ao produto para neutralizar sua acidez consegue corroê-la. Alguém das antigas conhece a validade do leite de vaca – vaca mesmo!
Os hábitos foram tão alterados pela indústria que hoje as pessoas recusam o leite in natura por considerá-lo nojento, intragável. Pois é, com a literatura, acreditem se quiser, aconteceu o mesmo. Se a narrativa não estiver a serviço de uma causa ou de uma ideologia – e quando digo ideologia considero a indústria cultural e de entretenimentos – não presta, é erudita demais, é canônica, representa o sistema, o opressor e tudo o mais.
Desconfio de tudo! Se não leio, desconfio do texto; quando o leio, desconfio mais ainda, tento esmiuçá-lo, trato-o como inimigo, não me deixo convencer, busco nas entrelinhas o discurso sub-reptício que pode me alienar e me colocar a serviço de uma causa cujos interesses sequer desconheço, até mesmo porque a dificuldade em descobrir quem controla as marionetes na tentativa de nos tornar títeres de seus desejos e interesses é inimaginável.
Tome-se por exemplo – antes de adentrarmos ao puramente literário – as celebridades. Não falo de artistas, como Sophia Loren, que em sua biografia relata a ajuda que teria dado a um menino e que tentara manter em secreto, mas que fora descoberta pela imprensa. Refiro-me a uma casta de atores e atrizes cujo talento, na maioria das vezes (pleonasmo) é fugidio. Na tentativa de trazê-lo para perto de si, contratam empresas que gerenciam suas vidas profissionais e do nada tornam-se ativistas e pilares do politicamente correto. Às vezes o passado condena, mas essa mesma empresa trata de torcer a vara e adequar os discursos para que as celebridades surjam ilibadas, quase perfeitas. Li há pouco que existe até mesmo um cardápio de causas e à celebridade basta escolher entre militar na causa feminista, indígena, racial, gay e demais variantes. O curioso é quanto mais medíocre a celebridade, mais ela aparece! Houve até mesmo um casal que adotou uma cachorrinha abandonada na beira da estrada... bem, previra tratarmos de literatura.
Pois bem, na literatura acontece o mesmo. O Estadão publicou uma reportagem sobre o “mais completo levantamento sobre o hábito de leitura do brasileiro, a Pesquisa Retratos de Leitura”, agora sob a batuta do Itaú Cultural (desconfio de bancos sobretudo!). A novidade, no caso é realizar pesquisas “menores” em “festivais literários para conhecer o perfil do brasileiro que frequenta esse tipo de evento”. Deduz-se que quem frequenta estas feiras já é alguém ligado a livros. Não creio. É o mesmo que afirmar que alguém vai a Roma só para ver o Papa ou que todo muçulmano é terrorista!
É claro, relativizei, mas há algo errado nessa reportagem que também generaliza o brasileiro como grande leitor. Vejam: afirmam que 30% dos brasileiros gostam muito de ler, porém, na Bienal, este índice sobe para 74% e na Flup (Feira literária das periferias) 77%! Não creio que os hábitos se alteram ao badalar dos sinos. Fato é que a mesma pesquisa Retratos da Leitura recentemente divulgou que 44% da população brasileira não lê e 30% nunca compraram um livro! Ademais, basta pesquisar na rede para dar de cara com notícias que revelam uma queda de 17,94% na venda de livros nos primeiros meses deste ano em comparação com 2018.
O fato é que em sua maioria os livros e autores mencionados na lista da reportagem referenciada parecem produtos das empresas de gerenciamento, cada um contando seu drama pessoal, ajustando-o a uma causa da moda. No mais, me intriga a distância desses 70% e trá lá lá de leitores das escolas e universidades. Onde se meteram eles? Confunde-me o espírito tal leitura, considerando-se o esforço que nós professores fazemos durante um curso para que os alunos leiam três ou quatro livros ao longo do semestre, sobre os quais giram as discussões em sala de aula. Onde andam esses leitores que povoam as feiras de livros? Nunca adentram as escolas e universidades?
Vislumbro públicos diferentes: há um caduco, em ruínas, que aprecia Machado de Assis, Guimarães, Clarice, Dalton Trevisan, Rubem Braga, Dante, Balzac, Amós Oz, Drummond, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa, Camões (os nomes vieram-me aleatoriamente); e há os antenados e socialmente comprometidos ou psicologicamente fragilizados à procura de pertencimento e de algum alento, que aprecia Zibia Gasparetto, Alan Kardec, Lázaro Ramos, Augusto Cury, Paolo Coelho, Stephen King, Djamila Ribeiro etc.
Não vou adentrar a questão do cânone e nem à resposta que deveria dar à pergunta que mantive como título, mas algo afirmado na reportagem continua a me corroer o espírito: “enquanto 56% dos ouvidos pelo Retrato da Leitura em 2015 disseram ser leitores, os números saltam para 95% na Bienal e 97% na Flup. É leitor pelo menos quem leu um livro inteiro ou em parte nos três meses que antecederam a pesquisa. [Meu Deus! Que definição!] 6,6% é a média de livros lidos nos últimos três meses pelo público da Bienal, 7,9% pelo público da Flup e 2,5 pelo brasileiro em geral.”
Reflitam vocês quatro sobre os índices – sim, porque creio que este texto não será lido nem pelos cinco leitores que previra Machado ao escrevinhar seu Memórias póstumas, de modo que permanece a questão: literatura pra quê? Talvez para fugir à ignorância que nos rodeia e nos sufoca, e é exatamente por isso que me intriga saber o que um público de 95% 97% lê. Apesar da lista, a reportagem traz mais dúvidas que respostas. Detalhe: do público da Bienal, que supostamente tem maior poder aquisitivo, apenas 7% leem história, economia, ciências sociais, filosofia, economia e política, enquanto 17% do público da Flup consomem obras relacionadas a essas áreas, o que prova que outras pesquisas sobre a escolaridade na periferia não passam de lorotas. Não estou a desmerecer a periferia, até mesmo porque de lá saí; afora isso, a reportagem afirma que o gênero preferido dos leitores da periferia é o romance - e eu também gosto de romances. Também não estou a desmerecer o gênero, o que questiono é a diferença de índices. Perdidíssimo estou. Acho que vou ler um romance, o gênero preferido de 100% dos brasileiros, essa massa genial de leitores que ignora as celebridades pseudo-engajadas e até mesmo os derrières cantantes, como disse semana passada.
De minha parte, prefiro a literatura de raiz – como se diz por aí – à literatura das prateleiras de supermercado, alienante e ao gosto de interesses que sequer imagino.


Confira:



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