Revista Philomatica

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A banalidade do mal e a causa animal


A história vem de longa data. Quem já não ouviu falar de Caim, o lavrador que, ciumento, deu cabo em Abel? Por estas horas, a serpente já havia enrolado Eva na conversa e Adão também já havia visto a boa vida que tinha no paraíso escorrer-lhe pelos dedos. É provável que tenha se irritado com Eva e até mesmo a odiado. O ódio, convenhamos, tem lá a sua pitada de maldade, assim como o ciúme, razão pela qual Caim fez o que fez com Abel, o pastor. Disso, deduz-se que o tropos do maior dos livros é um eterno embate entre o bem e o mal, maniqueísmo que persiste até nossos dias e nos faz a ser o que somos.
Nos anos de 1960, quando o Mossad, em uma operação espetacular, raptou Adolf Eichmann, criminoso nazista e um dos principais idealizadores do Holocausto, na Argentina, país também comandado por nazistas, a filósofa Hannah Arendt, a serviço do jornal The New Yorker, acompanhou o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Findo o julgamento, Arendt escreve Eichmann em Jerusalém, obra em que aprofunda o conceito de “banalidade do mal” por ela criado, ao defender que o resultado da massificação das sociedades criou uma multidão incapaz de qualquer juízo crítico, qual seja, inábil para julgamentos morais, aceitando ordens sem ao menos questioná-las.
Eichmann, membro da elite nazista e um dos idealizadores da solução final, portanto, visto como monstro em potencial, no julgamento revelou-se apenas um funcionário zeloso que fora incapaz de descumprir as ordens que recebera. Com isso, o mal torna-se algo banal. Bastante criticada, sobretudo porque o livro traz exemplos de judeus e instituições judaicas que, submetidas aos nazistas, cumpriram suas diretivas sem questionamentos, Arendt reflete principalmente sobre a violência impetrada por governos totalitários, cujo domínio revela-se mais opressor que a escravidão. Nas tiranias, sob a batuta das ideologias que as sustentam, seres humanos são capazes de realizar ações impensáveis, como a destruição e a morte, sem, contudo, serem motivados por qualquer malignidade.
Ao se deparar com o depoimento de Eichmann, que relatava suas atividades como carrasco nazista sem qualquer hesitação ou perplexidade, usando clichês e palavras de ordem, justificando seu comportamento sob a moral da obrigação que a função lhe exigia, e mais, argumentando que em nenhum momento poderia ser tomado por um criminoso, pois apenas cumpria o seu dever, além de ser um bom pai de família e não possuir nenhum ódio ao povo judeu – mas que, no entanto, viabilizou a morte de milhões de pessoas –, Arendt pergunta: “o que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?”
Deixo a questão filosófica por aqui, porém, transfiro a reflexão para a causa animal. Se em nossas sociedades massificadas, em que a humanidade torna-se algo raro e o que mais importa são as organizações econômicas e o lucro que elas geram, enfim, universo em que ninguém se importa se nos sentimos abandonados, solitários, submissos e alienados, imaginem o que não acontece com vidas que transitam embaixo dos nossos narizes e não têm voz, voz para gritar quando o desespero, o perigo, a fome e a morte batem à porta?
As pessoas, robotizadas, não veem cachorros, gatos e outros animais perambulando esquálidos pelas ruas. Essa falta de sensibilidade, penso, revela um pouco do mal que paira sobre e em nossos espíritos, mas, não bastasse isso, alguns se comprazem em torturá-los, agredi-los, matá-los. Às vezes, o que o animal procura e quer é apenas um pouco d’água, algo para comer. E o que recebe? Pauladas, chutes, água fervente. Se estiverem pensando que estas ações são praticadas por pessoas moralmente descompensadas, enganam-se! São senhoras e senhores, pais e mães, avôs e avós, muitos dos quais, aos domingos, vão à missa ou ao culto e lá imploram pela bondade divina, esquecendo-se do mal que cometeram.
O leitor deve estar pensando porque falo disso agora, não é mesmo? Só porque depois de um tempo sem acessar as redes sociais, especialmente o facebook, onde participo de alguns grupos de proteção animal, surpreendi-me, mais uma vez, com a quantidade de denúncias e pedidos de ajuda para animais vítimas de maus-tratos. Muitas vezes, a ajuda resume-se a uma assinatura, na espera de que o caso venha a ser visto pelas autoridades e os criminosos punidos, pois o animal já está morto. Mas a condenação, acreditem, nos tempos em que vivemos, receio seja algo raro.
Lamentavelmente o dito de Schopenhauer continua atualíssimo: “O homem fez da terra o inferno dos animais.” Eis a banalidade do mal, eterna como o céu, profunda como o inferno.



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