Há
um aforismo popular a dizer que devemos andar pra frente e esquecer o passado.
Também dizem que a voz do povo é a voz de Deus, por isso acredito nos adágios e
ditos populares, mas, como trago na alma um ceticismo ferrenho que não me larga
nem quando acontece aquela explosão no espaço que vai da fruta ao caroço, vivo
desconfiado, razão pela qual bato o pé e insisto nas releituras.
É
certo que em meio à descrença não deixo de me lembrar de Santo Agostinho e sua
reflexão sobre o tempo, quando o religioso comenta sobre os conceitos de passado,
presente e futuro. Budistas também preferem o caminho do meio, não ficam
remoendo o passado – e ali vivendo –, penso que nem mesmo planejam um futuro
incerto. Já os cristãos, estes se culpam pelo passado, penitenciam-se, não se
perdoam.
O
fato é que o passado nos deixa fortes quando o canibalizamos, e, se na vida o
tempo escorre pelos vãos dos dedos sem que possamos recuperá-lo, nos livros
conseguimos preservá-lo e dele tirar lições – e quem sabe algum rumo para
continuar nossa aventura até que nos tornemos todos iguais. Sim, pois só a
morte traz a igualdade entre os homens, o resto é retórica, filosofia, sofismas
– balela.
E
como falei da releitura como veículo para voltar ao passado, passo a comentar
um texto de Auerbach, em que o autor chama a atenção para o conceito de
criaturalidade, isto é, o sofrimento a que o homem é submetido como criatura
mortal, algo comum e que se aplica a todos nós mortais, que nela nos irmanamos.
Basta
olhar para o passado e lá encontramos traços da criaturalidade desde os
primórdios do homem. Tome-se por exemplo a antropologia cristã, que ressalta a
condição criatural do homem, sujeito a sofrimentos e à mortalidade. A Paixão de
Cristo surge como o mais insigne exemplo desse modo de pensar, isto é, para se
chegar à salvação é preciso sofrer – e muito! E olha que nem falo de toda a
santaiada criada pela Igreja...
Nessa
lógica, acontece uma relativização e uma desvalorização da vida terrena; não à
toa, no século XVIII, os Iluministas clamaram pela felicidade agora, já! O paraíso?
Deixa pra lá, depois a gente vê. Segundo Auerbach, “nos primeiros séculos da
Idade Média ainda estava muito vivo o conceito segundo o qual a sociedade
terrena tinha valor e metas”. Dante surge como “exemplo de um homem para quem o
planejamento secular e o esforço político por parte dos indivíduos e da
sociedade humana em geral eram esteticamente importantes, altamente
significativos e decisivos para a salvação eterna”.
Velhos
tempos. O que há de diferente entre este homem do antigo humanismo e o homem
atual, que ejacula alteridade quotidianamente, clama por igualdade, mas é
indiferente à exploração e à miséria? Nesses nossos tempos cruelmente
particularistas e regidos pelos interesses, em que os novos acontecimentos são
incompatíveis com as ideias genuinamente humanistas, em que fingimos ser, guiando-nos
pelas aparências, já não conseguimos mais interpretar e ordenar esteticamente
as novas formas políticas, econômicas e artísticas. A arte tornou-se um
amontoado de fragmentos que responde às individualidades, em detrimento do
coletivo. Este, determinado pelo consumo, deixa-se alienar e trata a cultura de
massa como arte genuína. E paro por aqui, porque senão...
Vivemos
um tempo de cansaço, esterilidade e aparências. Somos egoístas, venais, mas
sequer admitimos isso, porque antes de tudo somos vis e hipócritas! E, como o
tempo é curto, volto à minha releitura, mas não sem antes deixar um pequeno
entrecho de Auerbach, que ecoa lá do passado: “O que há de peculiar nesta
imagem radicalmente criatural do homem, o que está em nítido contraste com as
características do antigo humanismo, reside no fato de que, por mais respeito
que demonstre diante da roupagem terrena e social que o homem veste, perde todo
o respeito diante dele mesmo, tão logo a despe; por baixo desta vestimenta não
há nada além da carne, que será ofendida pela idade e pela doença, que será
destruída pela morte e pelo apodrecimento.”
Por
isso, no sofrimento e na morte, enfim, somos iguais, por mais que na vida tenhamos
sido Gugu.
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