Colocando
os pingos nos is: cansado da hipocrisia, da lisonja e do politicamente correto
que, como qualquer um, trago no espírito como arranhões, ao referir-me a homem
falo dos dois gêneros tradicionais e dos outros cinquenta e tantos que a
diversidade nos trouxe com a flâmula da liberdade desses nossos tempos mais
livres, porém, não menos ignorantes, bárbaros e bestiais.
Hoje,
ao ler uma daquelas reportagens absolutamente dispensáveis, que jornais e sites de notícias produzem como uma
mancha de tinta, só para não manter o espaço em branco – talvez seja o caso
desta crônica –, consegui ainda me surpreender com a ética, o respeito, a
humanidade, a compreensão, a alteridade, a bondade, enfim, a cristandade dos
internautas em seus comentários. Ali, tem-se a impressão de que vivemos no
melhor dos mundos possíveis e, arrisco afirmar, é provável que já estejamos
vivendo a Era de Aquarius tal a
generosidade, a gentileza e a empatia que brotam do espírito dos homens na convivência
do dia a dia; tudo é tão intenso, tão eufórico, que acredito ter havido uma
total inversão da ordem: estamos nos céus e não nos demos conta – algo difuso
tem vedado nossos olhos –, a harmonia é tanta, o amor está no ar, tudo é tão
bom que o inferno evaporou nos ares ou adentrou às páginas dos livros de
literatura, este espaço inominável em que perversos e libertinos insistem em
invencionar e garafunhar sobre páginas em brancos a vida obscura e devassa de
personagens que a ficção tem produzido sem qualquer verossimilhança com este
nosso mundo real, caridoso e magnânimo, uma prova de que também o realismo e a
mimeses já não têm razão de ser, acabaram-se, por mais que tentemos endeusar
Aristóteles ou reler Auerbach.
O
século XXI é a glória, sobretudo se comparado ao anterior, que hoje jaz
silencioso entre as páginas de livros cujas bordas e miolos acumulam o pó que
também cobriu a desfaçatez, a corrupção e o mal caráter do homem, fazendo deste
um ser sublime e etéreo que desliza pelos caminhos do céu terreno.
Vivemos
um pós-realismo metafísico em que nossas vestes, alvas, sequer imaginam a vida
pregressa de aventuras que os livros escondem – e que não nos atrevemos a
curiosar, até mesmo porque já não temos mais paciência para a leitura, afinal,
para que ler 200, 300, 400 páginas se temos o Twitter, o Facebook, áudios
e as imagens no Instagram? Para que
precisamos aprender a escrever se até recentemente insistiam em nos dizer que
devíamos nos arvorar contra tudo e contra todos que ousassem nos corrigir ou
nos ensinar? Felizmente em nossos dias já não há mais preconceito linguístico,
e o mais genial, já não há mais qualquer preconceito, já não há mais nada!, pois
somos lindos, felizes, humanistas, somos da Era
de Aquarius! Tudo isso está lá, nos comentários das redes sociais e das
reportagens publicadas em sites de
notícia. É como se lêssemos um diário celestial. Atingimos a perfeição! Quem
imaginaria? Rousseau? Este se foi há muito tempo...
Alguém
arriscaria a dizer o contrário? Ninguém, claro! Só se quisesse passar uma
temporada na Casa Verde... bem, deixe-me explicar dado que já não lemos, a Casa
Verde, conhecem? Sim, aquela, aquela lá de Itaguaí, a do Alienista...
Quem
arriscaria a dizer que no século passado ainda éramos cruéis, hipócritas e
corruptíveis? Quem ousaria afirmar que usamos muito de nossa criatividade para
criar um mundo de horrores, duas guerras mundiais, governos fascistas e
totalitários, e proibíamos as pessoas de ir e vir? E tudo sob a desculpa de
espalhar a igualdade? Quem arriscaria uma temporada na Casa Verde, sob o risco
de imitar Lúcifer e ser expulso desse paraíso em que vivemos hoje? Só para ter
o gostinho de afirmar que criamos técnicas de extermínio em massa, câmaras de
gás, campos de concentração, muros, cercas eletrificadas, sequestros,
terrorismo, o maniqueísmo da direita-esquerda, e que implantamos tudo isso em
nome dos direitos do homem, da igualdade, da justiça e da liberdade? Eu não!
Orgulhosos,
criamos as revoluções culturais, a libertação dos povos, as teologias da libertação...
criamos tudo isso e muito mais! E tudo, repito, pensando nessa nossa Era de Aquarius que ora vivemos e desfrutamos
sem sequer nos darmos conta! Os livros, ah! os livros... para que lê-los? A
ignorância e a hipocrisia são tão pacíficas, belas e aprazíveis... Para que
fuçar em Tolstói, Dostoievski, Bradbury, George Orwell, Machado, Voltaire,
Bielinski, Herzen, Turgueniev e tantos outros? Por que acreditar nesses homens
espúrios que denunciavam a falaciosa autonomia do homem e que, a exemplo de
Franz Werfel, afirmava que tudo terminaria em uma “confusão fatal da liberdade
com a anarquia moral” – e acrescento, ética!? Pra quê? Pra vermos a mentira e
nos cegarmos com a verdade, sermos expulsos desse nosso mundo céu paradisíaco? Afinal,
quem se atreveria a dizer que não vivemos no melhor dos mundos possíveis? Está
tudo tão perfeito... ontem mesmo, leitor, tivemos a prova disso: quem não soube
do ministro do STF homenageado pela câmara dos deputados por serviços prestados
a esse mundo que não é o nosso, mas deles?
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