Revista Philomatica

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Homens: hipocrisia, barbárie e literatura


Colocando os pingos nos is: cansado da hipocrisia, da lisonja e do politicamente correto que, como qualquer um, trago no espírito como arranhões, ao referir-me a homem falo dos dois gêneros tradicionais e dos outros cinquenta e tantos que a diversidade nos trouxe com a flâmula da liberdade desses nossos tempos mais livres, porém, não menos ignorantes, bárbaros e bestiais.
Hoje, ao ler uma daquelas reportagens absolutamente dispensáveis, que jornais e sites de notícias produzem como uma mancha de tinta, só para não manter o espaço em branco – talvez seja o caso desta crônica –, consegui ainda me surpreender com a ética, o respeito, a humanidade, a compreensão, a alteridade, a bondade, enfim, a cristandade dos internautas em seus comentários. Ali, tem-se a impressão de que vivemos no melhor dos mundos possíveis e, arrisco afirmar, é provável que já estejamos vivendo a Era de Aquarius tal a generosidade, a gentileza e a empatia que brotam do espírito dos homens na convivência do dia a dia; tudo é tão intenso, tão eufórico, que acredito ter havido uma total inversão da ordem: estamos nos céus e não nos demos conta – algo difuso tem vedado nossos olhos –, a harmonia é tanta, o amor está no ar, tudo é tão bom que o inferno evaporou nos ares ou adentrou às páginas dos livros de literatura, este espaço inominável em que perversos e libertinos insistem em invencionar e garafunhar sobre páginas em brancos a vida obscura e devassa de personagens que a ficção tem produzido sem qualquer verossimilhança com este nosso mundo real, caridoso e magnânimo, uma prova de que também o realismo e a mimeses já não têm razão de ser, acabaram-se, por mais que tentemos endeusar Aristóteles ou reler Auerbach.
O século XXI é a glória, sobretudo se comparado ao anterior, que hoje jaz silencioso entre as páginas de livros cujas bordas e miolos acumulam o pó que também cobriu a desfaçatez, a corrupção e o mal caráter do homem, fazendo deste um ser sublime e etéreo que desliza pelos caminhos do céu terreno.  
Vivemos um pós-realismo metafísico em que nossas vestes, alvas, sequer imaginam a vida pregressa de aventuras que os livros escondem – e que não nos atrevemos a curiosar, até mesmo porque já não temos mais paciência para a leitura, afinal, para que ler 200, 300, 400 páginas se temos o Twitter, o Facebook, áudios e as imagens no Instagram? Para que precisamos aprender a escrever se até recentemente insistiam em nos dizer que devíamos nos arvorar contra tudo e contra todos que ousassem nos corrigir ou nos ensinar? Felizmente em nossos dias já não há mais preconceito linguístico, e o mais genial, já não há mais qualquer preconceito, já não há mais nada!, pois somos lindos, felizes, humanistas, somos da Era de Aquarius! Tudo isso está lá, nos comentários das redes sociais e das reportagens publicadas em sites de notícia. É como se lêssemos um diário celestial. Atingimos a perfeição! Quem imaginaria? Rousseau? Este se foi há muito tempo...
Alguém arriscaria a dizer o contrário? Ninguém, claro! Só se quisesse passar uma temporada na Casa Verde... bem, deixe-me explicar dado que já não lemos, a Casa Verde, conhecem? Sim, aquela, aquela lá de Itaguaí, a do Alienista...
Quem arriscaria a dizer que no século passado ainda éramos cruéis, hipócritas e corruptíveis? Quem ousaria afirmar que usamos muito de nossa criatividade para criar um mundo de horrores, duas guerras mundiais, governos fascistas e totalitários, e proibíamos as pessoas de ir e vir? E tudo sob a desculpa de espalhar a igualdade? Quem arriscaria uma temporada na Casa Verde, sob o risco de imitar Lúcifer e ser expulso desse paraíso em que vivemos hoje? Só para ter o gostinho de afirmar que criamos técnicas de extermínio em massa, câmaras de gás, campos de concentração, muros, cercas eletrificadas, sequestros, terrorismo, o maniqueísmo da direita-esquerda, e que implantamos tudo isso em nome dos direitos do homem, da igualdade, da justiça e da liberdade? Eu não!
Orgulhosos, criamos as revoluções culturais, a libertação dos povos, as teologias da libertação... criamos tudo isso e muito mais! E tudo, repito, pensando nessa nossa Era de Aquarius que ora vivemos e desfrutamos sem sequer nos darmos conta! Os livros, ah! os livros... para que lê-los? A ignorância e a hipocrisia são tão pacíficas, belas e aprazíveis... Para que fuçar em Tolstói, Dostoievski, Bradbury, George Orwell, Machado, Voltaire, Bielinski, Herzen, Turgueniev e tantos outros? Por que acreditar nesses homens espúrios que denunciavam a falaciosa autonomia do homem e que, a exemplo de Franz Werfel, afirmava que tudo terminaria em uma “confusão fatal da liberdade com a anarquia moral” – e acrescento, ética!? Pra quê? Pra vermos a mentira e nos cegarmos com a verdade, sermos expulsos desse nosso mundo céu paradisíaco? Afinal, quem se atreveria a dizer que não vivemos no melhor dos mundos possíveis? Está tudo tão perfeito... ontem mesmo, leitor, tivemos a prova disso: quem não soube do ministro do STF homenageado pela câmara dos deputados por serviços prestados a esse mundo que não é o nosso, mas deles?


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