Revista Philomatica

sábado, 11 de janeiro de 2020

Sobre sobremesas


O ano começa e, parece-me, as notícias ainda não se reciclaram ou não se deram conta de que o calendário mudou. A balela veiculada pelos emburrecedores (e embrutecedores) programas de TV e portais de notícia de que é preciso se vestir de verde amarelo rosa azul-anil para ter dias felizes no próximo ano, as notícias, impávidas, olharam indiferentes para o vozerio e continuaram a oferecer o café amargo do dia a dia que, embora delicioso, para os açucólatras lembra o lado cruel e amargo da vida.
As ameaças dos países centrais e periféricos estão na ordem do dia. Cada um acusa à sua maneira e também usa seu poderio militar e terrorista a seu modo – e que vença não o melhor, o mais ético, mas o mais forte. Afinal, o que dizer? Melhor é se conformar como o povo ovelha que, diante do aumento dos combustíveis, em um raro dia em que vi os noticiários na TV, dizia: “fazer o quê, né?, é sempre assim, não muda nada.”
Não à toa Leibniz dizia lá nos tempos de antanho que vivíamos no melhor dos mundos possíveis. Ainda que tenha sido ridicularizado por Voltaire, a máxima mostrou-se tão obstinada quanto a craca na crosta do navio, é preciso tempo e paciência para soltá-la.  Darwin, por sua vez, anteviu toda a bandalheira de hoje e de sempre com a sua teoria da evolução e a seleção natural. Não à toa, repito, o evolucionismo tornou-se a religião dos governos no século XIX e, hoje, vemos os governos e os poderosos solapando a massa sem dó nem piedade, e a massa, a massa, meu Deus, diz “fazer o quê?”. Achando-me revoltado, obtuso leitor? Você viu a notícia de que deputados e senadores, e toda a canalha que habita a ilha da fantasia Kubitschek, gastaram nada menos que R$ 3.100.000.000,00 (isso mesmo!, três bilhões e cem milhões de reais) em trajetos para Paris, Roma, Nova York e Las Vegas??? E o presidente interrompe sua pausa entre o Natal e o Réveillon para assinar um salário mínimo de R$ 1.039,00? E a massa que desconhece a ironia diz “fazer o quê?”
Isso só acontece, creio eu, em razão do esforço conjunto da mídia, de políticos, sociólogos, antropólogos, futurólogos, ideólogos, obtusólogos e todos os ólogos existentes que, consubstanciados com o poder, alienam e inculcam na massa que ela deve morrer de trabalhar porque trabalhar dignifica o homem. Não discordo, mas, pergunto-me ao ler tais notícias quais homens são ou serão dignificados.
Enquanto isso, parte da mídia alimenta o imaginário da massa com sobremesas. Machado de Assis há muito dizia que temos o hábito de comer a sobremesa antes do prato principal. Você viu que em algumas capitais, nas comemorações de Ano Novo, as escolas de samba já saíram à rua para dar, digamos, uma canjinha, para entreter a massa? Esta, dopada, drogada, surtada e descompassada não sei com o quê, ri às desbragadas, fica feliz e mostra o cartazinho às câmeras com os dizeres “mamãe, eu estou na Globo”. E assim la nave va.
Mas não só os opressores e poderosos que subjugam e embrutecem as massas não. A massa, quando pode, não perde a oportunidade de explorar seu igual. Anotem esta historieta que presenciei na feira sábado passado. Aproximei-me de um banca em que um agricultor expõe milho, limões e mandiocas que cultiva, na esperança de lucrar algum dinheiro para seu sustento. Como o milho não advém do agronegócio, as espigas são díspares, algumas plenas de grãos e maiores, outras, talvez em razão do solo ou das intempéries, não se mostram tão atrativas e suculentas. Por isso, o agricultor teve a ideia de separá-las e a elas atribuir preços diferentes. Nada que qualquer outro comerciante não faria.
Uma jovem, ao analisar o milho decide pela compra das melhores espigas. Ao ser informada do preço, reage com desdém e diz: “Mas isso é muito caro. Eu não quero pagar isso!” O agricultor sequer teve tempo para a resposta, pois o Iphone 11 da jovem começou a soar insistentemente. Resolvida a ligação que a interrompera, a jovem volta-se para o agricultor que, com suas mãos grossas pela lida do trabalho e o contato diário com a terra, descascava umas outras espigas e continua: “Já disse que não posso pagar isso!”, ao que o agricultor replica: “Moça, mas essas espigas foram selecionadas, por isso o preço é diferente das outras.” A jovem, por sua vez, insiste: “Veja, até mesmo as outras acho caras. Vou explicar: eu tenho calopsita!”
O agricultor: “Eu sei, mas é o melhor preço que posso fazer. Se você procurar pela feira vai ver que o meu preço não é maior que o dos outros que vendem milho.” A jovem: “Parece que o senhor não entendeu. Eu tenho calopsita. Não posso pagar esse preço. O senhor vai ter que fazer um preço diferenciado pra mim. Eu tenho calopsita!”
Irritado, deixei a banca, pensando na facilidade em que as pessoas transferem suas responsabilidades aos outros. A calopsita, assim como as farras em Las Vegas e a escola de samba animando a massa, tudo se insere na ordem das sobremesas. A calopsita, a jovem decidiu por vontade própria comprá-la, porém, na hora de pagar pela alimentação do pássaro, decidiu transferir o ônus para o pequeno agricultor que conta os poucos caraminguás que junta com a venda do milho para sobreviver; a canalha política, torra o erário sem qualquer medida abusando da sobremesa, enquanto ao pobre sequer o prato principal lhe é permitido colocar à mesa e, por fim, para esse pobre, oferecem a ele o samba como sobremesa, afinal, não é de hoje que o mundo gira sobre a roda do panem et circenses.

Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/sobre-sobremesas-o-ano-comeca-e-parece-me-as-noticias-ainda-nao-se-reciclaram-ou-nao-se-deram-conta-de-que-o-calendario-mudou/

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