Revista Philomatica

sábado, 11 de janeiro de 2020

A ressurreição e morte de Eva Todor


Em busca do carro das ideias, deparei-me, uma vez mais, com a obtusidade que permeia as redes sociais. Ontem, muitos lamentavam a morte da atriz Eva Todor. Eva Todor morreu?, perguntavam os internautas entre boquiabertos e surpresos. Sim, uma grande atriz, mas viveu bem, faleceu aos 98 anos, constata um senhora. Outro, maldiz 2019 por levar mais um representante das nossas artes, estabelecendo comparações com a mediocridade, leme das celebridades de nossos dias. Há ainda aqueles que relembram personagens interpretadas pela atriz e, saudosos, choram a sua perda.
Ocorre que Eva Todor partiu em 10/12/2017. As redes sociais têm dessas coisas. Ali, sem qualquer risco que traz as generalizações, ninguém lê. Quando lê, lê as manchetes, pouco se importando se a notícia é de hoje, ontem ou será a de amanhã. O que interessa é repassar o que tomam por uma notícia quente e fresquinha, com todo o oximoro de direito. Não é preciso dizer que o grosso dessa lama toda são as chamadas fake news, anglicismo desnecessário diante das nossas notícias falsas, calúnias e fofocas. Também não é preciso dizer que no caso das notícias falsas, elas só são propaladas porque interessam às forças envolvidas no exercício da defesa de suas cabalas. Sabem como é, o ditado popular é impiedoso, nada resiste ao “onde há fumaça há fogo”, e, nesse ponto, o adágio assemelha-se às notícias divulgadas na internet, razão pela qual a expressão “cair na rede” equivale à marca de ferro quente no dorso do gado ovelha.
Diante do nada a partir do qual se produziram as notícias da semana, sobraram-me me os livros. Corro os olhos pela estante e Aqueles que queimam livros, de George Steiner, salta-me aos olhos. Cético e pessimista, Steiner é um daqueles humanistas que questionam a contradição entre a riqueza da cultura e do pensamento ocidental e sua capacidade de produzir genocídios que assustariam até mesmo o mais ingênuo dos neandertais. Não por outra razão, diante da incredulidade, Steiner começa seu livro com a afirmação: “Aqueles que queimam livros, que banem e matam os poetas, sabem o que fazem. O poder indeterminado dos livros é incalculável.”
Contudo, ao ressaltar o caráter dialético do livro, Steiner traz um sopro otimista ao afirmar que “precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos totalmente díspares sobre diferentes leitores”, cabe aos lúcidos a tarefa do convencimento, já que nem a hermenêutica e nem a psicologia podem prever os estragos que uma obra mal lida pode causar. Não por outra razão muito da barbárie conhecida foi gerada no seio da alta cultura por homens letrados e intelectuais que sistematizaram o horror e banalizaram a virtude, razão pela qual o autor sustenta que “na experiência humana, não há fenomenologia mais complexa do que aquela dos encontros entre o texto e percepção, ou, como observa Dante, entre as formas da linguagem que ultrapassam nosso entendimento e os níveis de compreensão em relação aos quais nossa linguagem é insuficiente”.
Por isso, se o livro e a literatura, por mais singelos que sejam, são a chama ínfima que ilumina o espírito perdido na escuridão da ignorância e do fanatismo, também pode ser a flâmula que alimenta o obscurantismo, tal a hibridez das ideias que o objeto livro pode abrigar. Mas nem por isso devemos nos desanimar, sobretudo diante do muito que tem sido produzido em nossos dias - falo das obras efêmeras e oportunistas que, segundo Steiner, são de apelo fácil à violência, à intolerância, à agressão social e política -, pois, acreditem, o autor, otimista, afirma que os “livros são a chave de acesso para nos tornamos melhores”; diante de tal afirmativa, é claro, não se pode esquecer o leitor, este ser repleto de ilusões e desilusões, esperanças, desesperanças e expectativas. Se a obra pode suscitar o mal, também pode ser paliativo ao espírito e afugentar o mal: quem não se lembra de Primo Levi, que recitava Dante a seu amigo Pikolo, em Auschwitz?
O poder da leitura é inquestionável e os livros com suas alegorias e metáforas desconstroem clichês e preconceitos, provocam discussões e nos elevam o espírito, até mesmo diante do real que, ficcionalizado, ressuscitou Eva Todor, só para matá-la uma vez mais e entristecer internautas incautos. Que venha 2021, quando então poderemos prantear o novo luto de Eva Todor. E há incrédulos que não creem na ressurreição do Cristo!


Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/a-ressurreicao-e-morte-de-eva-todor/

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