Revista Philomatica

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Não contem com o fim do livro

Comumente, aqui comento literatura e seus afins: bibliotecas, autores, livros, e, de arrasto, aqueles que os amam ou detestam, proibindo-os, banindo-os ou queimando-os. Há não muito tempo redigi um post chamado O e-book matará o livro impresso? A ideia me viera após ler um artigo sobre as maravilhas prometidas pelo e-book e também porque me lembrara de um outro, escrito por Machado de Assis, onde se discutia algo semelhante, ou seja, a morte do livro pelo jornal, que à época despontava como forte veículo de informação e cultural (ali muitos escritores publicaram seus romances em capítulos, os chamados folhetins). Coincidência ou não, embora não soubesse, um livro bastante interessante havia sido lançado na França, pela Grasset. Trata-se de N'espérez pas vous débarasser des livres, de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. Aos amantes dos livros é diversão garantida: um belo momento para refletir a circulação desse objeto ora tão desejado, ora tão odiado, e, refazer seu périplo ao longo da história. Embora pareça uma história anacrônica, esse bate-papo (já que o livro é todo em forma de diálogo) é sobre o futuro do livro. Um obra erudita, porém, atenta e acessível ao grande público.
A conversa toda é intermediada pelo ensaísta e jornalista Jean-Philippe de Tonnac. Os autores: Umberto Eco, reconhecidamente um expoente no mundo intelectual internacional é semiólogo, professor e escritor. São conhecidos seus dois grandes ensaios que questionam o funcionamento da linguagem: L'oeuvre ouverte e La structure absente (nomes que transcrevi das versões em francês). O grande público, porém, certamente o conhece dos best-sellers (diga-se, bons best-sellers) Le Nom de la Rose (O Nome da Rosa) e Le Pendule de Foucault (O Pêndulo Foucault), além de outros; Jean-Claude Carrière é dramaturgo, roteirista e autor de pelo menos trinta livros, dentre eles, Dictionnaire amoureux du Mexique, de 2009. Apresentados seus autores, o que vale é comentar a admirável reflexão sobre a movimentada história do livro, um diálogo envolvente a partir da perspectida desses dois leitores apaixonados que, entre coisas, esbarra no atual e inquietante futuro do livro frente às novas tecnologias - o e-book. As perguntas são inevitáveis: diante desse mundo tecnológico que se anuncia, o livro tal como o conhecemos está ameaçado? Ou essas novas ferramentas não passam de mais um lance, mais um episódio, de uma história que já conta mais de 5000 anos?
Para tentar tranquilizar o bom leitor que, dentre outras coisas, vê seu exemplar como um objeto de desejo, além, é claro, de experimentar instantes de prazer que ele proporciona, Eco e Carrière, evocam as peripécias de percurso do livro, ou seja, acidentes que envolvem a ignorância, a imbecilidade, a censura, os autos-de-fé, a inquisição e outras histórias que, sempre, tiveram como protagonistas, de um lado, o homem, em seus momentos de embrutecimento e, de outro, o livro, as grandes obras-primas, e sua capacidade de - como a Fênix, reaparecer, mais forte, e prometer sua sustentabilidade, entenda-se, sua perenidade.
Depois do tão alardeado crescimento das vendas de livros eletrônicos - no mercado americano, e a profecia de que isto resultaria numa mudança de hábitos dos leitores, o encontro desses dois escritores possibilitou a elaboração de curiosos pensamentos, claro, todos tendo o livro como protagonista. Eco, em entrevista à Télérama.fr, diz: “Le livre est une invention aussi indépassable que la roue ou le marteau” (O livro é uma invençao insuperável assim como a roda ou o martelo). Ou seja, malgrado as inúmeras variações, uma roda continua sendo uma roda e, um martelo, um martelo. Eco argumenta ainda sobre efemeridade dos eletrônicos, cuja vida útil, não vai além dos dez anos, ao passo que os livros como o meio mais fácil de transportar a informação, dependendo das condições de armazenagem, tem durabilidade incalculável. Outro dado importante nessa história é a praticidade. Como disse em meu outro post, livro não dá pau, não tem vírus (tem ácaros, traças - mas eles roem vagarosamente e não lhe surrupiam a informação num átimo). Acabou a energia? Sempre há uma vela em stand by.
Eco questiona ainda a vastidão das informações oferecidas na internet. O fato de armazenar um número infinito de obras é algo elogiável, porém, afirma o autor, há um problema que se coloca àquele que está acessando a rede mundial: o discernimento, afinal, lembra Eco: "Lá, encontramos tanto a Bíblia como o Minha Luta, de Adolf Hiltler. E o que fazer se uma obra não recomendável surgir na tela de alguém despreparado intelectualmente?", pergunta. "Esse será o problema crucial da educação nos próximos anos".
Ao afirmar: "Le livre a fait ses preuves. On ne peut rien inventer de mieux" (O livro já passou por suas provas. Não se pode inventar nada melhor), o jornalista que o entrevistou foi taxativo: mas, afinal, o que é um livro? Um objeto? Páginas a serem lidas? Um suporte? Um texto? Ao que Eco responde: "Um livro é uma série de páginas de texto e ou imagens reunidas por qualquer técnica que permita que seja folheado. Eis a estrutura do livro. Que as páginas sejam em pergaminhos ou em papel de celulose - como hoje, isso não tem qualquer importância". Ao ser questionado sobre a possibilidade de enumerar as páginas na tela, ironiza: "Ainda assim, continuamos com a estrutura do livro. O e-book, em que a foliação é possível, veio como uma novidade, que pretende emular o livro. Em certa medida, pelo menos, porque em um ponto ele não pode se igualar ao livro: o livro de papel é autônomo, ao passo que o e-book é uma ferramenta dependente, ainda que só da eletricidade. Robinson Crusoé, em sua ilha, se despuzesse de uma Bíblia de Gutenberg, teria algo para ler durante trinta anos. Se ela tivesse sido digitalizada em um e-book, ele teria se beneficiado, no máximo, durante as três horas de duração da bateria. Você pode jogar um livro do quinto andar e você irá encontrá-lo mais ou menos completo quando chegar lá embaixo. Se você joga fora um e-book, certamente será destruído". E completa: "Ainda podemos ler livros antigos de cerca de quinhentos anos. Por outro lado, não temos nenhuma prova científica de que o e-book pode durar mais de três ou quatro anos. Em qualquer caso, é razoável duvidar, dada a natureza dos seus materiais, a não ser que mantenha a mesma intensidade magnética durante quinhentos anos".
Carrière, de sua parte, lembra o prazer do colecionismo e afirma: "Cada livro traz uma personagem só para mim. Há obras que cruzam os séculos e outras não. Isso depende muito do gosto pessoal. Por isso que o livro tradicional não vai desaparecer". Enfim, histórias que rendem boas horas de prosa.

Nota: Edição em francês: N'espérez pas vous débarrasser des livres. Jean-Claude Carrière; Umberto Eco, entretiens menés par Jean-Philippe de Tonnac. Paris: Éd. Grasset, 2009.
Edição em português: Não contem com o fim do livro. Jean-Claude Carrière; Umberto Eco, tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Imagens: capa do livro em francês - Editora Grasset; caricatura de Umberto Eco e capa do livro em português, pela Editora Record, todas disponíveis no Google Images.

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