Quando pequeno (não há muito, rsrsrs), lembro-me de que os mais experientes, ao tentar explicar as sucessivas crises econômicas, comparavam o Brasil a outros países e sempre diziam: eles padecem com desastres naturais - terremotos, e nós, bem, nós temos os economistas. Hoje, porém, chego à conclusão de que nosso mal maior não são os economistas. A razão de nosso mal maior, de nossas desgraças, de nosso atraso moral, ético e intelectual (generalizo, claro!), enfim, de nosso mau humor, são os políticos. Essa categoria, que de tão extensiva em falcatruas e significados chega a cansar a sinonímica: o significante aparece bourré de sinônimos e intertextos outros: bando, cambada, súcia, choldra, caterva, gangue, corja, desfalque, roubo, desvio, trapaça, oportunismo, fisiologismo, corporativismo, quadrilha etc, etc, etc e analfabetismo. Analfabetismo sim! Afinal o direito ao voto é universal e para o Congresso parece valer a velha máxima da atração dos corpos, aquela história que acontece de você, leitor, estar caminhando tranquilamente por uma praça ou uma rua qualquer, vazia, calma e, de repente, alguém tropeça em você, inacreditavelmente, malgrado todo espaço à volta! Pois é, parece-me que para lá - o Congresso, se convergiram todos os senhores designados pela sucessão dos nomes que citei acima.
O porquê disso? Ainda ontem vi um programa humorístico na TV: em um dos quadros, gravado no Congresso, na Câmara dos Deputados, o entrevistador fazia perguntas aos tais senhores: qual o nome do presidente da Colômbia?, o que é DNA?, o que quer dizer a sigla PSDB?, o que é um partido político?, qual das duas Coreias e comunista: a do norte ou a do sul? (Isso tudo porque trazia um jornal em mãos e ali pescava assuntos que estavam na ordem do dia, portanto. é de se imaginar que qualquer parlamentar tivesse, ao menos, uma vaga ideia do que acontecia no mundo em 31.5.2010). Enfim, perguntas que - quero acreditar, qualquer estudante de nível mediano responderia com grande margem de acerto. Não é que eles (os deputados) erraram todas!!! E não estavam brincando não! Pelo contrário, se esquivavam temendo responder às questões! De pronto, entendi a razão da sofrível situação de nossa educação, a melhor do mundo, a crer nos programas políticos e na fala dessa elite altamente instruída acantonada em Brasília.
Porém, estaria sendo injusto caso não registrasse uma nota digna da síndrome de Macaé, como diria Diogo Mainardi. Um dos deputados do mais famoso partido de duas letrinhas disse que vivemos dias felizes, melhores impossíveis. Foi o bastante para que eu visse ali um Leibniz de Macaé. O cidadão acredita viver no melhor dos mundos possíveis do alto da farra e das mordomias que o cargo lhe assiste. Como sempre acho uma desculpa para meus volteios literários, acreditei melhor ausentar-me desse mundo podre e ir de volta ao passado, mais precisamente ao encontro do herói voltariano Candide.
Candide, protagonista do conto homônimo, é sobrinho bastardo do barão de Thunder-ten-Tronckh, razão de sua condição inferior em relação aos outros membros da família, no entanto, criado no castelo do tal barão, o jovem vive feliz e admira seu preceptor áulico, Pangloss, que lhe ministra a máxima de que tudo está para o melhor no melhor dos mundos possíveis. Ocorre que Candide amava Cunegonde, a filha do barão. O desejo o leva à transgressão de uma proibição social, em seguida, a repressão, e o jovem é expulso de seu paraíso terrestre.
A sequência de acontecimentos pelos quais o jovem há de passar lhe mostra que o mundo não era exatamente como Pangloss preconizava. Tão logo expulso do castelo onde vivia, Candide é recrutado pelo exército búlgaro e participa de uma guerra sangrenta, da qual nada compreende. Desertor, errante e mendigo, encontra seu preceptor, na Holanda, desfigurado pela varíola; vê Lisboa perecer sob o terremoto de 1755 e cai nas mãos da Inquisição. Milagrosamente salvo por Cunegonde, que sobrevivera a uma série de atrocidades e ora levava a vida de femme entretenue, Candide foge com a amada para a América, onde descobre a opressão dos jesuítas, o horror da escravidão e os hábitos dos selvagens. O pesadelo interminável em que se transformara sua aventura, repleta de tortura, horrores e brutais humilhações, é momentaneamente interrompido por sua estadia em Eldorado, protótipo da sociedade ideal. Enriquecido, Candide retorna à Europa; no entanto, em sua passagem pela França, Inglaterra, Itália e Turquia, o herói pôde constatar que o mal se sobrepõe em largo ao bem. Cercado de amigos que conquistara ao longo de sua viagem, Cacambo, seu fiel servidor e, Martin, um filósofo maniqueísta, Candide se instala em Propontide, onde reencontra Pangloss e Cunegonde, então, rabugenta e destituída de qualquer beleza, o que o entedia profundamente. Um velho turco o convence a esquecer os males do mundo e a cultivar seu jardim. Candide e seus amigos - sua micro sociedade, se dedica a essa prática, que considera a única suscetível de trazer aos homens a felicidade.
A priori, os parágrafos acima traçam o conteúdo do mais famoso conto voltairiano e permitem entrever uma narrativa cuja trama romanesca e extravagante é repleta de eventos burlescos e picarescos. O leitor se assombra com a sequência de fatos: após uma tempestade e um naufrágio, há mortes, mostras da crueldade humana, um terremoto, sequestros, resgates, fugas, perseguições, carnificinas, duelos, cenas de corsários, estupros, encontros e desencontros. Mas o que está por trás desta sucessão de peripécias que mal dá fôlego às personagens de se recuperar de um lance trágico antes de cair noutro?
Voltaire, preocupado em conceber uma estrutura que reflita as incoerências do mundo, engessa sua narrativa de temas presentes nos romances de aventura então em voga, de maneira a reiterar as vicissitudes da existência humana e com isso desmistificar a vida. Ao longo de Candide, no entanto, o ideal aparece como algo absolutamente quimérico. Os heróis típicos do romance sentimental sofrem, sob a pena de Voltaire, uma deformação radical. A princesa pudica, por exemplo, em Candide, na pele de Cunegonde, passa pelas mãos de diversos bárbaros, é violada inúmeras vezes e termina escravizada e lavadeira de um senhor, antes de ser resgatada por Candide. Este testemunha a dificuldade de viver em um mundo que destrói, a todo instante, o princípio otimista que lhe fora revelado por Pangloss.
Ora, o princípio preconizado por Pangloss é o da razão suficiente, preceito vulgarizado por Voltaire pelo ridículo através do aforismo le meilleur des mondes na esteira da filosofia de Leibniz. A razão suficiente, no sistema filosófico alemão, é o princípio segundo o qual nada acontece sem que haja uma causa ou ao menos um razão determinante, isto é, para cada acontecimento, situação ou condição, há uma razão que a justifique como a melhor que poderia haver, simplesmente porque Deus assim o quis, portanto, não haveria outra melhor, o que equivale a afirmar que, malgrado o predomínio da miséria humana reinante no mundo, a qual condena o homem a situações degradantes, este, ainda assim, continua a ser o melhor dos mundos possíveis, enfim, um otimismo[1] exacerbado ridicularizado por Voltaire.
Tal otimismo confere a Candide o status de texto moderno e atual, uma vez que o otimismo e as teses providencialistas estavam então no centro das discussões. Os anos que precederam a redação do conto foram marcados por uma grande admiração pela ciência em geral e particularmente pelas teorias de Newton, que tiveram, na França, Voltaire como grande divulgador. Este, contrário à filosofia de Leibniz, cujas pesquisas lhe foram transmitidas por Frederico da Prússia, em 1736, sustenta que ideias, conceitos e a filosofia sejam ancorados no cotidiano e no material, ou seja, isentas de certo metafisicismo, tal qual a filosofia leibniziana, que se propõe ao estudo do ser e da realidade vinculados às causas primeiras e aos primeiros princípios. Prova disso vem do próprio Voltaire que, em 1753, ao se instalar em Ferney, escreve para Mme Denis: “Il est bien doux d’être dans sa Maison, de la construire, de l’arranger.”
Os acontecimentos de 24 de novembro de 1755 fazem com que Voltaire se insurja contra a indiferença e a insensibilidade da filosofia aos fenômenos naturais que, de forma trágica, transtornam o espírito e a vida dos homens. O horror da Guerra dos Sete Anos, que eclode em 1756, também lhe perturba o espírito. Em correspondência à condessa de Saxe-Gotha (22.1.1757), não se contém e alfineta: “Que d’horreurs, madame, et que le meilleur des mondes possibles est affreux.”[2]
Nota-se, após esses acontecimentos, Voltaire aterrorizado e pronto a reconsiderar toda a visão de mundo que recebera até então, razão pela qual se aflige, se indigna, questiona e se revolta. Não lhe concebe a ideia de que tragédias e crimes sejam necessários à perfeição e à moral, porque delas resultariam um bem maior. Candide é fruto de um momento de rupturas e de desilusões. O ceticismo do gênio de Ferney, diante de um mundo pleno de ideias imobilistas, tal qual às de Leibniz, é direcionado para a literatura, donde Candide, um compêndio - ainda que paródico, contra todas as formas de opressão, obscurantismo, intolerância, barbárie e fanatismo.
A sequência de acontecimentos pelos quais o jovem há de passar lhe mostra que o mundo não era exatamente como Pangloss preconizava. Tão logo expulso do castelo onde vivia, Candide é recrutado pelo exército búlgaro e participa de uma guerra sangrenta, da qual nada compreende. Desertor, errante e mendigo, encontra seu preceptor, na Holanda, desfigurado pela varíola; vê Lisboa perecer sob o terremoto de 1755 e cai nas mãos da Inquisição. Milagrosamente salvo por Cunegonde, que sobrevivera a uma série de atrocidades e ora levava a vida de femme entretenue, Candide foge com a amada para a América, onde descobre a opressão dos jesuítas, o horror da escravidão e os hábitos dos selvagens. O pesadelo interminável em que se transformara sua aventura, repleta de tortura, horrores e brutais humilhações, é momentaneamente interrompido por sua estadia em Eldorado, protótipo da sociedade ideal. Enriquecido, Candide retorna à Europa; no entanto, em sua passagem pela França, Inglaterra, Itália e Turquia, o herói pôde constatar que o mal se sobrepõe em largo ao bem. Cercado de amigos que conquistara ao longo de sua viagem, Cacambo, seu fiel servidor e, Martin, um filósofo maniqueísta, Candide se instala em Propontide, onde reencontra Pangloss e Cunegonde, então, rabugenta e destituída de qualquer beleza, o que o entedia profundamente. Um velho turco o convence a esquecer os males do mundo e a cultivar seu jardim. Candide e seus amigos - sua micro sociedade, se dedica a essa prática, que considera a única suscetível de trazer aos homens a felicidade.
A priori, os parágrafos acima traçam o conteúdo do mais famoso conto voltairiano e permitem entrever uma narrativa cuja trama romanesca e extravagante é repleta de eventos burlescos e picarescos. O leitor se assombra com a sequência de fatos: após uma tempestade e um naufrágio, há mortes, mostras da crueldade humana, um terremoto, sequestros, resgates, fugas, perseguições, carnificinas, duelos, cenas de corsários, estupros, encontros e desencontros. Mas o que está por trás desta sucessão de peripécias que mal dá fôlego às personagens de se recuperar de um lance trágico antes de cair noutro?
Voltaire, preocupado em conceber uma estrutura que reflita as incoerências do mundo, engessa sua narrativa de temas presentes nos romances de aventura então em voga, de maneira a reiterar as vicissitudes da existência humana e com isso desmistificar a vida. Ao longo de Candide, no entanto, o ideal aparece como algo absolutamente quimérico. Os heróis típicos do romance sentimental sofrem, sob a pena de Voltaire, uma deformação radical. A princesa pudica, por exemplo, em Candide, na pele de Cunegonde, passa pelas mãos de diversos bárbaros, é violada inúmeras vezes e termina escravizada e lavadeira de um senhor, antes de ser resgatada por Candide. Este testemunha a dificuldade de viver em um mundo que destrói, a todo instante, o princípio otimista que lhe fora revelado por Pangloss.
Ora, o princípio preconizado por Pangloss é o da razão suficiente, preceito vulgarizado por Voltaire pelo ridículo através do aforismo le meilleur des mondes na esteira da filosofia de Leibniz. A razão suficiente, no sistema filosófico alemão, é o princípio segundo o qual nada acontece sem que haja uma causa ou ao menos um razão determinante, isto é, para cada acontecimento, situação ou condição, há uma razão que a justifique como a melhor que poderia haver, simplesmente porque Deus assim o quis, portanto, não haveria outra melhor, o que equivale a afirmar que, malgrado o predomínio da miséria humana reinante no mundo, a qual condena o homem a situações degradantes, este, ainda assim, continua a ser o melhor dos mundos possíveis, enfim, um otimismo[1] exacerbado ridicularizado por Voltaire.
Tal otimismo confere a Candide o status de texto moderno e atual, uma vez que o otimismo e as teses providencialistas estavam então no centro das discussões. Os anos que precederam a redação do conto foram marcados por uma grande admiração pela ciência em geral e particularmente pelas teorias de Newton, que tiveram, na França, Voltaire como grande divulgador. Este, contrário à filosofia de Leibniz, cujas pesquisas lhe foram transmitidas por Frederico da Prússia, em 1736, sustenta que ideias, conceitos e a filosofia sejam ancorados no cotidiano e no material, ou seja, isentas de certo metafisicismo, tal qual a filosofia leibniziana, que se propõe ao estudo do ser e da realidade vinculados às causas primeiras e aos primeiros princípios. Prova disso vem do próprio Voltaire que, em 1753, ao se instalar em Ferney, escreve para Mme Denis: “Il est bien doux d’être dans sa Maison, de la construire, de l’arranger.”
Os acontecimentos de 24 de novembro de 1755 fazem com que Voltaire se insurja contra a indiferença e a insensibilidade da filosofia aos fenômenos naturais que, de forma trágica, transtornam o espírito e a vida dos homens. O horror da Guerra dos Sete Anos, que eclode em 1756, também lhe perturba o espírito. Em correspondência à condessa de Saxe-Gotha (22.1.1757), não se contém e alfineta: “Que d’horreurs, madame, et que le meilleur des mondes possibles est affreux.”[2]
Nota-se, após esses acontecimentos, Voltaire aterrorizado e pronto a reconsiderar toda a visão de mundo que recebera até então, razão pela qual se aflige, se indigna, questiona e se revolta. Não lhe concebe a ideia de que tragédias e crimes sejam necessários à perfeição e à moral, porque delas resultariam um bem maior. Candide é fruto de um momento de rupturas e de desilusões. O ceticismo do gênio de Ferney, diante de um mundo pleno de ideias imobilistas, tal qual às de Leibniz, é direcionado para a literatura, donde Candide, um compêndio - ainda que paródico, contra todas as formas de opressão, obscurantismo, intolerância, barbárie e fanatismo.
A crer na teoria de Leibniz (e do Leibniz de Macaé) talvez mereçamos mesmo a casa de horrores que temos!
[1] Sobre o otimismo providencial de Leibniz, vale a pena transcrever trecho de seu Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberte de l’homme et l’origine du mal, de 1710, mais conhecido como Théodicée: “Le roi du monde pouvant choisir entre mille combinaisons, a choisi celle qu’il a jugée la plus facile et la meilleure, afin que le bien eût le dessus et le mal le dessous dans l’univers. C’est par rapport à cette vue du tout qu’il a fait la combinaison générale des places que chaque être doit occuper d’après ses qualités distinctives.” Citado em : Oeuvres de Platon, traduites par Victor Cousin. Tome Huitième. Paris : Pichon, Librarire-Éditeur, 1832, p. 471.
[2] VOLTAIRE. Voltaire à Ferney, as correspondance avec la Duchesse de Saxe-Gotha.Recuillies et publiées par MM. Évariste Bavoux et A. F.. Paris : Didier et Cie. Libraires-Éditeurs, 1860, p. 167.
Imagens: primeira edição de Candide; litografia: Candide encontra Cunegonde e Voltaire - todas disponíveis no Google Images.
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