Revista Philomatica

domingo, 13 de junho de 2010

Pangloss, uma obsessão machadiana

Autores, obras e personagens, ao longo da circulação literária, ganham destaque, e, no caso das personagens, ocorre de abandonarem o espaço da escrita à procura de outros mundos, de uma vida mais mundana. Iracema é uma delas: escapa do espaço da narrativa e salta para as artes - da tela de Antônio Diogo da Silva Parreiras (1909), toma gosto pela tela do cinema: Iracema, a virgem dos lábios de mel, filme de Carlos Coimbra (1979); Iracema, uma transa amazônica, de Carlos Bodansky (1974); Iracema, de Vittorio Cardineli e Gino Talamo (1949) e Iracema, de Vittorio Capellario (1917), são alguns exemplos. Aventura-se, ainda, em sua trajetória pop e torna-se personagem do samba enredo da Império Serrano, Aquarela Brasileira (1964), e invade canções de intérpretes como Cascatinha e Inhana (Iracema) e Chico Buarque (Iracema voou), numa prova de que a atualidade da Iracema de José de Alencar é atestada por sua permanência como canône literário, haja vista não só o grande número de traduções como também todas essas adaptações. Capitu não fica atrás e segue périplo idêntico.
Porém, há personagens que persistem na narrativa. A despeito da presença em outras formas de linguagens, mostram que tomaram gosto pelo espaço das linhas e das letras, ainda que pelo poder da escritura, do traço, apareçam e transitem por contextos radicalmente diferentes daquele de sua origem, constituindo, dessa forma, uma tessitura, uma trama inteiramente distinta, graças ao intertexto. Isso ocorre, por exemplo, com Pangloss, a célebre personagem de Voltaire, que do épico Candide, transita por crônicas e romances de Machado de Assis.
(*) Machado, ao focalizar os tormentos do homem e os absurdos do mundo sob o enleio de um humor reflexivo, ora divertido, ora amargo, sempre com uma nota de debique e parecendo brincar com o leitor, recorre à figuras tutelares da literatura. Como discípulo dos moralistas franceses, acredita no egoísmo como invólucro dos bons sentimentos. Seus romances e contos são repletos de personagens movidas pelo interesse e pelo egoísmo; nas crônicas, essas características que movem os valores sociais, repousam nas conveniências e na mentira e são tratadas sob um misto de crítica, sobretudo quando direcionadas à classe política.[1]
Assim, a exemplo dos grandes ironistas do século XVIII, tais como Sterne, Swift e, sobretudo, Voltaire, a técnica usada por Machado consiste em estabelecer um vínculo entre a normalidade dos fatos e sua aparência essencial através da crítica irônica, de maneira a sugerir o mais absurdo de modo cândido, induzindo o leitor ao contrário, o que faz com que o absurdo pareça o normal e, este, excepcional. Com isso, pode-se destacar uma destas figuras tutelares – Pangloss, uma obsessão machadiana, que frequenta não só as crônicas, mas dois de seus importantes romances da segunda fase: Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.
Em Memórias póstumas, a razão suficiente, ou seja, o princípio das teorias finalistas aparece por meio das digressões ‘filosofantes’ do narrador, conforme lembra PASSOS.[2] Ali, o bon-vivant, culto e requintado, Brás Cubas, num jogo intertextual promovido pelo narrador, confere ao leitor o papel do fiel e ingênuo discípulo de Pangloss. Veja-se o cotejo entre o texto voltairiano:

“Pangloss enseignait la métaphysico-théologo-cosmolonigologie. Il provait admirablement qu’il n’y a point d’effet sans cause, et que, dans ce meilleur des mondes possibles, le château de monseigneur le baron était le plus beau des château, et madame la meilleure des baronnes possibles.
"‘Il est démontré, disait-il, que les choses ne peuvent être autrement : car tout étant fait pour une fin, tout est nécessairement pour la meilleure fin. Remarquez bien que les nez ont été faits pour porter des lunettes ; aussi avons-nous des lunettes. Les jambes sont visiblement instituées pour être chausées, et nous avons des chausses. Les pierres ont éte formées pour être taillées et pour en faire des châteaux ; aussi monseigneur a un très beau château : les plus grand baron de la province doit être le mieux logé ; et les cochons étant faits pour être mangés, nous mangeons du porc toute l’année. Par conséquent, ceux qui ont avancé que tout est bien ont dit une sottise : il fallait dire que tout est au mieux.’” [3]

e a criação machadiana:


“Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, — e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.”[4]

O diálogo intertextual prossegue inclusive intrometendo o leitor, como o interlocutor que pode refutar as idéias do ‘pensador’ Brás Cubas, como bem observa PASSOS. Destarte, ao justapor o duplo Brás Cubas-Pangloss, Machado insiste no absurdo da generalização e no despropósito do caráter inútil das explicações monolíticas, de modo que o saber totalizante torna-se produto do cômico, ainda nas observações de PASSOS. Com isso o romancista ao valer-se de Pangloss como testemunha ficcional ironiza justamente a pretensão do narrador em justificar as desgraças e a crueza da realidade por meio do pensamento finalista leibniziano, no qual tanto as vitórias, quanto as desgraças são fundadas no princípio superior do Ser.
O diálogo que envolve as teorias e muito do conhecimento do século XIX, tem seu lastro na ‘filosofia’ de Quincas Borba, outra personagem do livro, a qual se apresenta como o fundador do Humanitismo, uma caricatura da religião da humanidade[5] preconizada pelos positivistas. Assim, para o símile Pangloss-Candide, há Quincas Borba-Brás Cubas, mais uma ironia do romancista ao justapor o ‘filósofo’-preceptor da fonte ao ‘filósofo’-narrador. Este fica estupefato com seu mestre, que demonstra sob o molde do Humanitismo, o funcionamento da engenhoca que se constituía a realidade sócio-econômica brasileira:

“— Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite.”[6]


Diante de um cientificismo ainda ingênuo no Brasil da década de 1880, que acreditava mandar à cova a filosofia, Quincas Borba, assim como Pangloss, aparece como um otimista ridículo. Quincas, no entanto, reitera:

“Pangloss, dizia-me ele ao fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire.” [7]

Ora, se em Memórias póstumas o Humanitismo soa como uma sátira às teorias finalistas, em Quincas Borba ele aparece sob o lema darwiniano de “ao vencedor as batatas”. Se em Memórias póstumas a justaposição Brás Cubas-Candide difere pelo fato de que o primeiro é culto e refinado e, o outro, de um caráter pleno de ingenuidade, em Quincas Borba, o duplo se ajusta, Rubião, ao ser relativizado a Candide, apresenta muito de seu caráter ingênuo e obtuso e, em seu périplo de Barbacena ao Rio de Janeiro, dará mostras de sua personalidade simples e naïve, evidentemente que em contextos e dimensões absurdamente diferentes.
Em Quincas Borba, o contato de Rubião com Pangloss dá-se através dos jornais da Corte, através dos quais constata o apreço e a consideração destinada ao falecido Quincas, a quem se atribuía uma peleja filosófica:
“No começo da semana seguinte, recebendo os jornais da Corte (ainda assinaturas do Quincas Borba) leu Rubião esta notícia em um deles: ‘Faleceu ontem o Sr. Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular filosofia. Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarelo e enfezado que ainda nos há de chegar aqui um dia; é a moléstia do século. A última palavra dele foi que a dor era uma ilusão, e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa muitos bens. O testamento está em Barbacena.’ ”[8]

Embora Pangloss seja nomeado apenas neste instante, Rubião já fora iniciado no dogma finalístico do Humanitismo por Quincas Borba quando este expusera ao ingênuo professor de Barbacena, o princípio de Humanitas, então sob o mote darwiniano:

“— Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”[9]

Disto, conclui-se a abrangência intertextual do conto filosófico Candide e, sobretudo Pangloss, porta-voz a ridicularizar a teoria de Leibniz em universo tropical, como verdadeira obsessão machadiana.


Para citar este artigo (a partir do asterisco (*)): DIRCEU, Magri. Aspectos da presença de Voltaire nas crônicas machadianas. Dissertação de Mestrado, FFLCH - Faculdade de Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo-USP, 2009.
[1] Sobre as considerações machadianas à política ver BOSI, Alfredo. O teatro político nas crônicas de Machado de Assis. IEA, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Texto disponível em versão eletrônica (www.iea.usp.br/artigos), consulta em 4.6.2009. Sobre a questão menciona o autor: “A classe mais numerosa, a que pertence quase todo o gênero humano, é aquela em que os homens, atentos unicamente a seus interesses, nunca lançaram os seus olhares para o interesse geral. Concentrados em seu bem-estar, esses homens dão o nome de honradas apenas às ações que lhes são pessoalmente úteis.” Adiante: “Se o universo físico se submete às leis do movimento, o universo moral não deixa de submeter-se às leis do interesse. O interesse é na terra o mago poderoso que modifica aos olhos de todas as criaturas as formas de todos os objetos.” (Helvetius, Do espírito, ed. de 1758, II, 2).
[2] Importante estudo sobre a presença de Voltaire em Memórias póstumas de Brás Cubas está em A Poética do Legado, de PASSOS (1996, p. 70-79) em capítulo denominado ‘Uma escala a mais nas viagens de Cândido’.
[3] VOLTAIRE. Candide ou L’Optimisme et outres contes. POCKET CLASSIQUES. Collection dirigée par Claude Aziza. Paris: Pocket, 2005, p. 20, 21.
[4] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Klick Editora, 1997, p. 102.
[5] COMTE, Auguste. Catéchisme positiviste ou Sommaire Exposition de la Religion Universelle en onze entretiens systématiques entre une Femme et un Prête de l’Humanité. Paris: Chez l’Auteur, 1852. A Religião da Humanidade, criada por Comte em 1854 como coroamento da carreira filosófica, em que procurou estabelecer as bases de uma completa espiritualidade humana, sem elementos extra-humanos ou sobrenaturais está largamente fundamentada no Catéchisme. O autor chega mesmo a definir sete sacramentos para o novo credo: “la Présentation (nomination et parrainage); l’Admission (la fin de l’éducation; la Destination (le choix d’une carrière; le Mariage; la Retraite (à 63 ans); la Séparation (faisant office d’une extrême-onction sociale); l’Incorporation (trois ans après la mort, l’union avec les morts)”. A Religião da Humanidade também é conhecida como Positivismo religioso. Em Paris, no Marais, 5 de la rue Payenne, ainda existe uma Chapelle de l’Humanité.
[6] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Klick Editora, 1997, p. 191.
[7] Idem, p. 192.
[8] ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Klick Editora, 1997, p. 35.
[9] Idem, p. ....
Imagens: Pangloss is cured of syphilis; Docteur Pangloss Portraituré, por Amabee, Strasbourg, France e Cartaz do filme Memórias póstumas de Brás Cubas, com Reginaldo Faria, todas disponíveis no Google Images.

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