Revista Philomatica

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saramago: o Mago

É chegada a hora dos guardiães da tumba. Explico-me: na sexta-feira, 18, morreu José Saramago. Enquanto vivo, só o autor tem o sentido de sua obra, é dono de seu próprio discurso, só ele pode reivindicar um sentido para aquilo que diz; após a morte, apropriam de seu discurso a crítica post mortem, os especialistas de sua obra, enfim, os guardiães do saber do autor. É o momento de escarafunchar linhas e entrelinhas, buscar semelhanças, diferenças, textos e intertextos, manuscritos, ideias, influências, memórias inconfessas, recepções, o périplo de sua circulação literária, livros inconclusos... É chegado o momento de a crítica (re)conhecer o escritor, o biográfico, o eu social e fazer o trabalho arqueológico da obra, ou seja, buscar pelo autor, pelo eu por trás das obras. E, acredito, Saramago será pródigo mesmo para além da campa.
Na imprensa, muito se falou de Saramago nesses três últimos dias. Houve excessos, penso. Cheguei a ler: o que seremos de nós, agora, sem Saramago? Puro exagero! Vamos ser o que sempre fomos. O que somos mesmo sem Clarice, sem Guimarães, sem Machado, sem Proust, sem Flaubert, sem Stendhal etc etc. Vamos ser uns poucos, se comparados à população global, uns poucos e míseros seres estranhos, habituados a gastar algumas horas produtivas do dia a manter uns 500 gramas, um quilo, de saber nas mãos e com isso encurtar distâncias, enveredar por outros mundos, por ideias alheias; ideias, diga-se, que enriquecem e enobrecem o espírito, algo que a grande maioria, indiferente ao livro, passa ao largo.
Saramago abriu a porta para muitos desses mundos, muitas dessas histórias nas quais vemos a nós mesmos - refletidos. Fazia-nos, como dizia Barthes, sentir o prazer do texto, ensinava-nos como não viver só, pois, só se é feliz quando se está lendo, só a literatura, a narrativa, produz o amor, já que todo discurso amoroso é absolutamente estéril, uma vez que só se diz eu te amo diante da impossibilidade de ser amado.
Conjecturas e devaneios à parte, Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1998, morreu aos 87 anos, em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde morava depois de seu auto exílio, em razão da condenação (1992), em Portugal, de seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, considerado pela Igreja portuguesa um compêndio de alucinações teológicas e uma provocação teatral transcendente. Nesse mesmo ano o governo português veta a candidatura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo ao Prêmio Literário Europeu. Harold Bloom, conceituado crítico literário norte americano, ao contrário, diz estar convencido de que O Evangelho Segundo Jesus Cristo continua sendo seu melhor romance. Segundo Bloom, ali Saramago mostra-se não só corajoso e polêmico em particular contra o Cristianismo mas também contra todas as religiões em geral. Já fazendo as vezes dos guardiães da tumba, um Voltaire revisitado (guardadas as devidas proporções, é claro!). Voltaire, o mais conhecido dos deístas, era critico ferrenho da ingerência da Igreja na vida das pessoas (Saramago era confessadamente ateu). Bloom, uma referência da crítica literária americana, afirma que no Evangelho, Saramago consegue a proeza de tratar Cristo e o Catolocismo sem se sujeitar a um respeito obrigatório.
O crítico destaca ainda um grande feito de Saramago: o de ter deixado oito romances de ótima qualidade, algo raro mesmo entre ótimos escritores. O Ano da Morte de Ricardo Reis faz parte dessa lista e é um desses livros que mantém, mesmo após décadas de sua publicação, o frescor preservado e a prosa saborosa.
Nos últimos anos, uma das grandes preocupações de Saramago foi a violência política e a religião. Sobre sua posição, afirmava: "Eu diria que sou um comunista libertário. Alguém que defende a liberdade. A liberdade de não aceitar tudo que venha, porém que assume o compromisso com três perguntas que devem ser nossos guias de vida: Por quê? Para quê? Para quem?" Mudava de opinião quando lhe convinha: em 2003, em carta escrita ao jornal espanhol El País, o escritor retirou seu apoio ao regime de Fidel Castro, de Cuba, após a execução de três cubanos que sequestraram um barco na tentativa de fuga para os Estados Unidos. Decisão, diga-se, sequer pensada por intelectuais brasileiros, mesmo quando Cuba, trancafiou nos porões de suas prisões escritores e intelectuais cubanos, na tão recorrida estratégia usada pelos regimes ditatoriais para se perpetuarem no poder e calar a liberdade. Saramago, à época condenou o regime castrista, dizendo que Cuba havia perdido a sua confiança e traído seus sonhos, porém, dois anos depois teceu elogios a Castro, quando condenou os Estados Unidos por sua "fisionomia fascista". Em 2002, quando da ocupação da Cisjordância por Israel, mais uma vez Saramago despertou polêmica ao afirmar que a atuação dos militares israelenses se assemelhava ao horror nazista dos campos de Auschwitz. Para Bloom, no entanto, Saramago ao falar de política, assumia o estereótipo stalinista de sempre.
Polêmicas e opiniões à parte, o que vale e o que fica para a posteridade é o homem iluminado que foi Saramago. Ganhador também do Prêmio Luís de Camões, a mais alta condecoração da língua portuguesa, Saramago deixou inacabado o livro Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas!, que apesar do título - uma referência a um verso do dramaturgo Gil Vicente, versa sobre o tráfico de armas, tema atual que só confirma o que dizia: "Nunca separo o escritor do cidadão. Isso não significa que queira converter minha obra em panfleto. Significa que não escrevo para o ano de 2427, mas para hoje".
Autor de personagens inesquecíveis, Saramago, que Mago traz no nome, foi aquele que soube trabalhar em suas obras o universo do sonho, mantendo sempre em contato a imaginação e a realidade, enfim, foi aquele que também traz no nome (e para o leitor) a cura, pois Sara a alma. E ave Sara-Mago!

A obra de Saramago:

1947, Terra do Pecado, romance
1966, Os Poemas Possíveis, poesia
1970, Provavelmente Alegria, poesia
1971, Deste Mundo e do Outro, ensaio
1973, A Bagagem do Viajante, ensaio
1974, As Opiniões que o DL Teve, ensaio
1975, O Ano de 1993, poesia
1976, Os Apontamentos, ensaio
1977, Manual de Pintura e Caligrafia, romance
1978, Objecto Quase, romance
1979, Poética dos Cinco Sentidos - O Ouvido, ensaio
1979, A Noite, teatro
1980, Que Farei com Este Livro, teatro
1980, Levantando do Chão, romance
1981, Viagem a Portugal, ensaio
1982, Memorial do Convento, romance
1986, O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance
1986, A Jangada de Pedra, romance
1987, A segunda Vida de São Francisco de Assis, teatro
1989, História do Cerco de Lisboa, romance
1991, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, romance
1993, In Nomine Dei, teatro
1994-1998, Cadernos de Lanzarote, Vol. 1 a 5, diários e memórias
1995, Ensaio Sobre a Cegueira, romance
1997, Todos os Nomes, romance
1997, O Conto da Ilha Desconhecida, romance
1999, Folhas Políticas, ensaio
1999, Discursos de Estolcomo, ensaio
2001, A Maior Flor do Mundo, conto infantil
2003, O Homem Duplicado, romance
2004, Ensaio Sobre a Lucidez, romance
2005, Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido, teatro
2005, Intermitências da Morte, romance
2006, As Pequenas Memórias, diários
2008, A Viagem do Elefante, romance
2009, Caim, romance

Imagens: Caricatura de José Saramago, José Saramago e capa da edição brasileira de O Ano da Morte de Ricardo Reis, todas disponíveis no Google Images.

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