Revista Philomatica

quinta-feira, 10 de março de 2011

Sheherazade no Carnaval

Na imprensa, hoje, quinta-feira, ainda é Carnaval. Certo que com alguma ressaca e aquela dorzinha de cabeça constante por causa do batuque, mas ainda assim, é Carnaval. Nos telejornais: - novidade! acabaram de descobrir que há dias chove torrencialmente em Mato Grosso. Ah! apareceu também um vídeo no Estadão que mostra - mais uma! - deputada propineira. Algo rotineiro que, duvido, qualquer brasileirinho de dez anos não tenha ouvido ao menos uma dezena de vezes. Mas isso não é nada! Que mal pode haver em dezenas de cidades isoladas, uma mísera perda estimada em pouco mais de um bilhão e meio de reais - parte da safra de soja - e mais uma maracutaizinha em Brasília?!
Isso não é nada se comparado ao que afirmou a jornalista Rachel Sheherazade. Dizer que Carnaval é "negócio de ricos"!!! Isso sim é uma heresia! E a comunidade, como fica? E toda aquela gente, que mal sai da avenida e já vai para a quadra encomendar a próxima fantasia? Meu Deus! Morte a Sheherazade! Morte a Sheherazade!
"Mas isso é radicalismo, repressão, ditadura", dirão muitos uspianos. Você é reacionário! Ou seria reacionária? Calma leitor, afinal: estariam eles dirigindo-se a mim, que pedi a morte de Sheherazade, ou a ela, que transferiu o Carnaval do morro e colocou-o sob os auspícios das grandes cervejarias, ao som de pagodeiros e bandas de forró, enfim, sob a proteção do teto dos grandes camarotes?
Antes que alguém me acuse de intolerância por pedir a morte de Sheherazade, informo: só disse isso na esperança de que ela me contasse algumas histórias, feito aquelas das Mil e uma Noites. Não tenho e nunca tive a intenção de matar alguém, o que queria, na verdade, era ouvir a Xerazade, Sherazade, Scheherazade, Xerazard - sei lá, cada hora escrevem de um jeito, meu Deus, nunca chegam a um acordo! Quando era adolescente lia sobre o Khadaffi, hoje a manchete do jornal trazia Gaddafi: o que fez o homem retroceder no alfabeto? A idade ou a tirania?
Mas revenons à nos moutons: gerou polêmica as declarações da apresentadora Rachel Sheherazade ao jornal Tambaú Notícias, na Paraíba. Segundo a UOL Notícias de hoje, Sheherazade afirmou que o Carnaval não é uma festa genuinamente brasileira, pois teria surgido na época vitoriana e se espalhado pelo mundo. Embora tenha declarado que não é "inimiga" da festa, Sheherazade incomodou porque ousou dizer que o Carnaval não é uma festa popular. Para isso, afirmou: "Balela. O Carnaval virou negócio, e dos ricos. Que os digam os camarotes VIPs". Como toda verdade dói, crucificaram a moça.
Decididamente não é essa a minha intenção. Antes de mais nada, gostaria de me declarar solidário e dizer que ela tem lá suas razões, aliás, um amontoado delas, mas, ainda assim, me permito algumas correções.
Talvez o mais acertado seria dizer que o Carnaval teve suas origens nas festas pagãs na Roma Antiga, quando cristãos, escravos e seus senhores invertiam os papéis: por um dia apenas, eram os servos que mandavam. Isso devia ser delicioso! Imagina você com a possibilidade - legal - de estar com a vara em mãos! Mais tarde, já na Idade Média, aconteciam as missas e procissões cômicas e, mais uma vez as regras se alteravam: no lugar dos padres, guiavam as procissões personagens bizarras, tais como o Rei Momo, que resiste até os dias de hoje. A véspera da quaresma era uma festa: os foliões podiam satirizar os costumes religiosos e da Igreja, a autoridade máxima na época.
No Brasil a inversão não era tamanha, mas havia os entrudos, com aquela mania de atirar bolas de cera nos outros e guerrinhas d'água pela rua. Passasse você pela rua do Ouvidor e certamente seria alvo fácil.
Esta algazarra sem noção acontecia em diferentes partes do país. A polícia, embora tentasse, raramente conseguia conter as festas.
Machado, em suas crônicas, menciona leis municipais para coibir as manifestações populares, desnecessário dizer, ignoradas pela massa.
"Estes perigos consistem principalmente em sermos, impiedosamente, fuzilados com bolas de cera cheias de água e molhados com esguichos de lata. Achamos muito difícil manter a nossa dignidade enquanto caminhávamos pelas ruas", escreveu Darwin em seu diário ao visitar Salvador, em 1832, na companhia de dois tenentes da Marinha Britânica.
O fato, poderia prosseguir Sheherazade, ao contar sua história, é que a bagunça foi organizada para, de certa forma, tornar-se orgulho da nação. Para isso, bastou o "pai dos pobres", a exemplo do que fizera Mussolini, na Itália, misturar sua imagem à cultura nacional e popular. Vargas, na década de trinta, sob a égide dos costumes e ideologia fascistas, cunhou as regras da apresentação moderna, diferentes daquelas praticadas pelas sociedades carnavalescas dos anos 20.
Segundo Leandro Narloch, "as primeiras regras de avaliação e ordem do desfile, nasceram quando o interventor federal do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, começou a dar dinheiro para as escolas. A apresentação ocorria na Avenida Rio Branco, o mesmo local onde as demonstrações militares comemoravam a Independência todo dia 7 de setembro. Os instrumentos de sopro foram proibidos. Só poderiam participar entidades registradas como sociedades recreativas civis".
A festa ficou disciplinada, patriótica. Ainda segundo Narloch, a "Deixa Falar, primeira escola de samba de que se tem notícia, desfilou em 1929 usando na comissão de frente cavalos da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Três anos depois, o samba-enredo da escola era A Primavera e a Revolução de Outubro, em homenagem à tomada de poder de Getúlio Vargas em outubro de 1930".
Pode-se bem perceber que Sheherazade teria histórias para muitas outras noites e, ousando um pouco, poderia afirmar com folga, à maneira de Narloch, que sem a influência do fascismo italiano, o famoso desfile da Sapucaí não existiria e, sem ele, o samba seria outro, meio parecido com aquele que Piximguinha e Donga tocavam, na década de 1910, na casa da baiana Hilária Batista da Silva, a tia Clara, na Praça Onze, centro do Rio de Janeiro.


Para saber mais: DARWIN, Charles. O Diário do Beagle. Tradução de Caetano Galindo, UFPR, p. 60; NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. Ilustrações Gilmar Fraga. São Paulo: Leya, 2009, p. 123-148

Imagens: Desfile da Escola de Samba Beija-Flor, campeã do Carnaval do Rio de Janeiro em 2011, foto divulgação extraída do site: fttp//www.rac.com.br/entretenimento/carnaval; Entrudo, Jean-Baptiste Debret, de 1823 e Entrudo na Rua do Ouvidor, de Agostini, 1884.

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