Revista Philomatica

quinta-feira, 31 de março de 2011

Da Nouvelle Revue Française às Éditions Gallimard

As Éditions Nouvelle Revue Française nascem em 1911 como uma espécie de extensão da revista literária criada por André Gide e seus amigos em 1909. Constatando a boa acolhida que tivera a revista, eles queriam dispor da biblioteca que tinham em mãos para publicar alguns volumes na NRF, fosse de material já publicado ou não, fossem romances ou trechos deles.
Os três primeiros livros das Éditions Nouvelle Revue Française (NRF) aparecem em junho de 1911: L'Otage, de Paul Claudel; Isabelle, de André Gide e La Mère et l'enfant, de Charles-Louis Philippe, logo seguido por Éloges, de Alexis Leger, posteriormente conhecido por Saint-John Perse. À época, Gaston Gallimard já estava por lá, surpervisionando tudo o que se imprimia, embora seu nome ainda não aparecesse capa, cuja única insígnia que trazia eram as letras NRF.
Gide consegue que Paul Claudel se comprometa em publicar suas futuras obras sob o insígnia da NRF, porém, apesar do respeito mútuo que une os dois autores, a aliança entre eles será fragilizada, não só porque a revista começa a abrir espaço para autores não ajustados à linha de Claudel, mas também porque Claudel talvez não concordasse com as inclinações de Gide e sua moral, que o autor não faz questão alguma de esconder.
A literatura, contudo, é um caso à parte e a NRF faz disso um lema. A literatura prevalece sobre as diferenças religiosas, morais ou políticas. À literatura não se deve restringir ou subtrair a experiência da diversidade humana.
Uma vez que já fazem para a revista, Gide e Jean Schlumberger estão dispostos a pagar os custos da jovem casa editorial, mas é preciso que alguém gerencie o negócio e não há ninguém melhor para ocupar o posto que Gaston Gallimard, que Gide conhecera em 1906. O filho de Paul Gallimard, proprietário do Théâtre de Variétés e colecionador de pinturas impressionistas, é um ávido leitor de seus trabalhos e ele tem, como Gide, laços normandos: os Galimard eram proprietários do solar Benerville, na região de Deauville.
Gaston é um homem de esprit, bem relacionado e, ao que parece, de alguma fortuna. Trata-se de um bom negócio para a NRF, especialmente porque nota-se nele um desejo de emancipação, que supera as limitações de uma origem um pouco suspeita, se vista da margem esquerda do Sena. Ele concorda em assumir a gestão da nova casa editorial e assina com Schlumberger e Gide o ato que trouxe à luz, em 31.5.1911, às Éditions de la NRF.
A participação do jovem é louvável: imediatamente após assumir seu posto, assina contratos, negocia com gráficas e livreiros, visita livrarias e contribui largamente para o financiamento da empresa. Gaston casou-se em 17.12.1912 com a neta de um antigo colecionador, proprietário do Hotel de Cluny, de Paris, Yvonne Redelsperger. De sua união nasceu, em 1914, seu único filho, Claude Gallimard.
A proximidade entre a revista e a casa editorial é extremamente bem sucedida. O catálogo das Éditions é enriquecido com os autores da NRF (Gide, Claudel, Leger, Fargue, Rivière, Larbaud, Suarès, Romains, Bloch...) assim como de outros escritores que vão diretamente às Éditions: Drieu la Rochelle, Roger Martin du Gard, autor do ótimo Jean Barois, enfim, cria-se um inquebrável laço entre Gide e Gaston Gallimard.
Atenta às vanguardas, a NRF não se limita a nenhuma delas. A editora vai, sob esta divisa, muito além da revista e não a acompanha no abandono aos surrealistas; ao contrário, sem qualquer dificuldade assimila as profusões de Cendrars e de Cocteau, as economias Morand e de Malraux, o savoir-faire de Kessel ou de Simenon. Dessa forma o espírito NRF parece ligar-se intimamente ao de seu fundador, André Gide, no que ele tem de ousado, liberal e de menos preconceituoso. Um dos episódios mais memoráveis ​​deste período é a recusa em publicar a primeira parte de La Recherche du temps perdu, de Marcel Proust, no final de 1912. Jean Schlumberger não presta muita atenção à obra, advertindo sobre a cópia volumosa que se recomenda não proceder à publicação, pois o autor é um mundano que gravita em uma órbita moral, social e estética que não é o da NRF. Du côté de chez Swann será lançado em 1913, às expensas do autor, pela editora Bernard Grasset. Nota-se então a gravidade da falta cometida e, será necessária uma ação combinada de Gide, Jacques Rivière - secretário da revista desde 1912 - e Gaston Gallimard, para que Proust deixe seu primeiro editor e prossiga a publicação da Recherche na NRF. Impresso em novembro de 1918 pela Éditions de la NRF, À l'ombre des jeunes filles en fleurs, recebe o Prêmio Goncourt em 1919.
Mesmo enfraquecida pelas restrições e as circunstâncias da guerra, a atividade das Éditons continua durante conflito, com Gaston Gallimard poupando-se de ir ao fronte. Assim, ele publica em 1917 La Jeune Parque, de Paul Valéry, que marca o regresso do mestre ao charme da poesia. Rebatizada Librairie Gallimard em 1919, a editora tornou-se, sob a liderança de Gaston Gallimard, um negócio florescente ligado a importantes autores, como Proust, Malraux, Saint-Exupéry, Queneau, Sartre, Hemingway e Faulkner, além de acolher numerosas coleções, incluindo a prestigiosa Bibliothèque de la Pléiade. Durante a guerra, Gaston Gallimard mostrou-se hábil nos negócios ao perceber que o melhor serviço que podia prestar à literatura era não isolá-la em uma ilha de excelência, mas financiar em tempo incerto a criação e o reconhecimento de obras através de uma política editorial menos exclusiva. O projeto de Gaston Gallimard havia sido compreendido por Gide desde 1916, quando o sugerira renomear as Éditons de la NRF, então muito associadas ao seu nome. Logo, Gaston em um verdadeiro golpe de ousadia, se associa a seu irmão e a seu amigo Raymond Couvreux Maney, impondo o excelente Jacques Rivière à direção da revista. As Éditions tomam novo impulso, levantam vôo e começam a ser vistas como grande referência e autoridade literária.
O equilíbrio econômico vêm no início dos anos de 1930, quando transferem a divulgação da casa editorial às Messageries Hachette e se engajam, provisoriamente, na imprensa popular e política com os periódicos Détective, Voilà e Marianne.
No período entre as duas guerras, a editora extende a abrangência de seus negócios com a criação de inúmeras coleções: Les Peintres Nouveaux, Les Documents Bleus, Bibliothèque des Idées, Les Essais, Vie des Hommes Illustres e Du Monde Entier. A literatura francesa de criação encontra seu lar em coleções como Une Oeuvre, Un Portrait, e em Métamorphoses, que acolhe os jovens dadaístas e, depois, os surrealistas, assim como os escritos de Jouhandeau, Ponge, Michaux, ou Tardieu Audiberti.
Jean Paulhan, editor-chefe da revista após a morte de Rivière em 1925, é um dos promotores desta nova geração, apesar de seu rompimento com os surrealistas politizados, o que prejudica as boas relações de Breton e Aragon com Gaston Gallimard. Contudo, Gaston Gallimard rodeia-se de colaboradores com os quais se reúne semanalmente em um comitê de leitura. Entre eles figuram intelectuais ligados à revista: Jean Paulhan, Benjamin Crémieux, Ramon Fernandez, Bernard Groethuysen, logo acrescidos por Brice Parain, André Malraux, Arland Marcel e Raymond Queneau.
A casa traz então uma contribuição decisiva para a renovação do romance associando ao catálogo de obras mais antigas as obras singulares de Morand Supervielle, Cocteau, Cohen, Aymé, Kessel, de Saint-Exupéry, Giono, Simenon, Queneau e Sartre, porém, permitindo que escapem Montherlant, Céline e Gracq.
A casa editorial se destaca também pela publicação de textos de Freud e Alain, e obras filosóficas de Kierkegaard, Hegel e Heidegger; de ciências humanas publica Leiris e Dumézil, e, num contexto cada vez mais politizado, aparecem publicações de ensaios importantes de Gide, Giono e Bernanos.
O comitê de leitura das Éditions Gallimard é instituído em 1925. Com a ascensão da editora, vem a grande afluência de textos de todos os gêneros: hoje, por volta de 6000 manuscritos são recebidos anualmente pela editora. A comitê é o lugar onde a dimensão coletiva da NRF é manifestada. Os membros do comitê de leitura são recrutados principalmente entre autores e editores da casa. Patrick Modiano verá nisso certa dificuldade e renuncia ao seu cargo em outubro de 1981. Porém, o comitê não tem sido o único veículo de escolha editorial. Raymond Queneau, por exemplo, observa que, em 1948, excluindo a Série Noire, apenas um terço dos livros publicados neste ano foram objeto de deliberação.
Veio a guerra e durante a Ocupação Gaston procurou preservar a integridade de sua casa editorial. As equipes das Éditions se dispersaram durante o êxodo, quando os Gallimard e os Paulham passam o verão de 1940 em Carcassonne na casa do escritor Joë Bousquet. A publicação da NRF é então interrompida. Gaston Gallimard decide retornar a Paris em outubro de 1940 afim de preservar sua sociedade.
À época os alemães já tinham instaurado um regime de controle de edição na zona ocupada, ordenando a retirada de inúmeras obras que consideravam de certa toxité e exigindo dos Gallimards garantias particulares, uma vez que o catálogo da casa editorial possuía inúmeras delas. A sede da NRF é lacrada em 9 de novembro, porém, no dia 23 é estabelecido um acordo: Gaston mantém a direção de sua empresa, mas consente que os alemães se familiarizem com a NRF. Logo, Gaston aceita que a direção da NRF seja confiada ao colaboracionista Drieu la Rochelle, que abre a editora a escritos pró-alemães.
Privada de seus autores históricos, a revista deixa de circular em 1943. Ao mesmo tempo a resistência se organiza em torno de Paulham, Queneau e outros. É um período doloroso e complexo, mas, ainda assim, marcado pelo aparecimento das obras de Albert Camus e Maurice Blanchot, e, apesar da censura, pela publicação de textos de Eluard, Aragon, Sartre, Queneau, Saint-Exupéry e Jünger.
Com a liberação a revista é interditada por um comitê de seleção, chamado comité d'épuration. Anos mais tarde, em 1951, com a morte de Gide, a casa editorial viverá a verdadeira ruptura de suas ligações com o grupo de escritores que marcou sua origem.
As gerações se sucedem. Os filhos de Gallimard são acolhidos no seio da casa editorial. Sucessos da editora (Autant en emporte le vent, Le Petit Prince) e a coleção Pléiade permitem que a editora tenha sólido desenvolvimento editorial, depois confirmado com a compra de Denöel e do Mercure de France. Com a chegada de autores como Yourcenar, Le Clézio, Tournier e Modiano, Claude Gallimard adota uma política destinada a confirmar um desenvolvimento a longo termo, às vezes, sem esperança de rentabilidade imediata. A casa abre suas portas à literatura estrangeira: grandes romancistas americanos como Faulkner, Hemingway, Miller, Steinbeck farão parte do catálogo. Os franceses descobrem Borges, Cortázar, Roth, Pasternak, Kerouac e Kundera. Aparecem os ensaios, sobretudo com Aron, Sartre, Merleau-Ponty e Simone de Beauvoir. François Erval, J.-B. Pontalis e Pierre Nora introduzem o departamento de ciências humanas, cujo marco será a publicação, em 1966, de Mots et les choses, de Michel Foucault, obras de Duby e críticas de Starobinski.
As Éditions seguem de vento popa e sobre a capa branca, as três letras NRF, desenhadas por Schulemberger e associadas ao logo da Gallimard, lembram aos leitores que, há um século, no número 79, da rue Saint-Lazare, com alguns milhares de francos, escritores franceses construíram sua própria morada e deram asas a um sonho.


Nota: O texto acima é uma adaptação livre do texto de Jérome Garcin, parte da Exposição Virtual que comemora os cem anos da Editora Gallimard. Imagens: 1) André Gide, Jean Schlumberger, Jacques Rivière et Roger Martin du Gard à Pontigny, 1922 photographie © Coll. succession A. Gide/ Éditions Gallimard; 2) La Nouvelle Revue Française n° 1, février 1909, Couverture d'ouvrage, © Archives Éditions; 3) Gaston Gallimard, quando tornou-se gerente das Éditions de la NRF, photographie © Archives Éditions Gallimard. Todas disponíveis no site da Exposição Virtual Gallimard-BNF.

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