Afirmar
que o mundo sempre foi regido pela batuta masculina nada mais é que constatar o
óbvio. E isso não se explica pela constituição física e/ou a inteligência do
homem, como insiste em bradar muito machista de plantão. Arrisco dizer que a
submissão da mulher tem origem na sua própria força. Não, não estou atribuindo
a ela a culpa da sua subjugação, como tem sido comum em nossos dias, em casos
em que se condena a vítima e não o estuprador!
Afirmo
que o homem age covardemente todas as vezes em que assedia física e moralmente
a mulher, valendo-se do poder tradicionalmente conferido a ele - sim, é
tradição, até mesmo mulheres dizem que homens não choram - para sujeitar o sexo
oposto. E por duas razões: medo e bestialidade; medo, porque por mais que se
esforce não consegue entender o intelecto feminino, diverso, plural, criativo,
perseverante, vigoroso e forte; bestial, porque rude se esquece de que a
delicadeza e a inteligência são superiores à força e ao poder perverso.
Bem,
todo esse preâmbulo do óbvio só para dizer que apesar da maladroite regência masculina, ópera e o libreto são escritos por
elas, que há muito solaparam a base do pedestal do macho. E não fizeram isso de
modo sorrateiro, mas armadas de cortesia, civilidade e singeleza, ainda que
hora ou outra tenham sido tomadas por intrusas. Afinal, que faria o homem ao
ver seu universo desbravado por essas bravas gentes delicadas fazendo tudo o
que ele fazia - e melhor?!
Vejam
Júlia Lopes de Almeida! Nascida no Rio de Janeiro, viveu parte da infância na
minha querida Campinas; ali, começa a escrever na Gazeta de Campinas, apesar de a literatura “não ser visto como uma
atividade própria das mulheres” (com aspas, porque é assim que dizem seus
biógrafos). Também confessa a João do Rio que a essa época fazia versos às
escondidas.
Bem,
o fato é que Júlia vem à luz e já em 1919 é eleita presidente honorária da
Legião da Mulher Brasileira. Mais tarde, integra o grupo de escritores e
intelectuais que planeja a criação da Academia Brasileira de Letras. Contudo,
embora seu nome fizesse parte da lista dos 40 imortais que fundariam a
entidade, foi excluído posteriormente, porque os fundadores optaram por uma
academia exclusivamente masculina. E Machado consentiu!!!
Mas
falemos de A Intrusa, romance de
Júlia Lopes de Almeida, que me foi apresentado por uma amiga, leitora contumaz.
Publicado em 1905 nas páginas do Jornal
do Commercio, em capítulos, como ditava a regra de todo bom folhetim, vira
volume três anos depois. Ainda que parte da crítica afirme que a obra de Lopes
de Almeida é marcada pela influência do realismo e do naturalismo francês,
tratando-se d’A Intrusa, não me
parece este um comentário de todo justo.
A Intrusa,
obra escrita já sub judice do
realismo, tem uma estrutura narrativa característica do Romantismo. Lopes de
Almeida segue a velha fórmula do folhetim à la Dumas, de modo que o leitor
vê-se diante de um sobejar de diálogos. O juramento romântico - vide Atala, de Chateaubriand -, déclancheur de toda a trama, também está
lá, assim como os ardis da antagonista, de fato, a intrusa. Mas vamos ao
enredo.
A Intrusa conta
a história de Argemiro, advogado bem sucedido no Rio de Janeiro oitocentista,
mais precisamente à época da Belle Époque,
quando a capital, um arremedo de Paris, acreditava-se no auge da cultura
cosmopolita. Viúvo, jovem e atraente, é cobiçado pelas mulheres; contudo, do
casamento anterior com a filha dos Barões de Cerro Alegre, resultou a
intratável e mimada filha Glória.
Em
meio à má educação da filha - educada pela sogra, a baronesa de Cerro Alegre -
e um escravo ludibriador, Argemiro decide contratar uma governanta, e o faz via
anúncio de jornal. Ao fazê-lo Argemiro não só recebe críticas do amigos Caldas
e Assunção, mas sobretudo da sogra ciumenta.
Argemiro,
ainda empenhado em seu juramento, impõe a Alice Galba, única candidata a responder
ao anúncio, à condição de jamais se encontrarem, de modo que quando Argemiro
adentrava a casa, Alice se escondia. A situação perdura gerando conflitos,
sobretudo com a sogra, cujo intrometimento confere a ela o protagonismo e a
alcunha de intrusa, muito embora na obra o adjetivo seja atribuído a Alice
Galba. Ocorre que a onipresença de Alice Galba invade a casa e o espírito de
Argemiro, que tem seu quotidiano inteiramente alterado. O final! Aquele que
todo leitor semântico deseja; felizes para sempre!
A
presença de Alice reproduz ipsis litteris
o papel da mulher não tão bela, mas recatada e do lar - fazendo uso, aqui, do
jargão repetido à exaustão nos últimos dias. Isto posto, em A Intrusa não é evidente a escritora de
verve feminista como quer boa parte da crítica; e só o digo porque há aqueles
que a culpam de “reforçar a dualidade contraditória com que a tradição
estigmatizou a mulher”, confirmando a ideologia dominante.
Antes
de concluir, peço ao leitor semiótico que leia o início do capítulo XII: uma
pérola que reproduz o embate entre romancista e personagem, algo à la Sterne e
no rastro de Machado.
Por
fim, dada a projeção de Júlia Lopes de Almeida em seu tempo, não é justo que
lhe seja reservada perene coadjuvação. Que ganhe o merecido protagonismo!
Imagem: Almeida Júnior, Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, 1891.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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