O
que Annie Lennox tem a ver com a falta de memória? A resposta, leitor, se se
dispuser a um pequeno esforço, ainda que padeça de alguma anamnese, verá que
tem lá seus lastros nos célebres versos do profeta, dado que uma geração vai, e
outra geração vem. Bem, as predições do áuspice afirmam que nesse movimento
pendular o que permanece é a terra, por isso, tudo o que venha a dizer digo sob
as asas da ressalva e da ambiguidade.
Não
sei em que grau de perda de memória você se inscreve, mas Annie Lennox é uma
cantora; sim, daquelas que comumente faziam uso do aparelho fonador, ao
contrário das atuais estrelas da música, cujos glúteos bombados e em movimento
produzem sons supostamente admissíveis na escala musical. Lembrou-se de seu
ídolo da música e já está a resmungar, achincalhando-me conservador? Vá lá,
estravase, bote seu lado fã clube para fora, não me importo! Mas aposto que ao
lembrar-se dele, se não padecer de qualquer encefalopatia, serão lembranças da
ordem corpórea e não sonora! Pronto, matei a charada! Seu ídolo canta com o cul!
Após
a provocação, vamos ao caso Annie Lennox: a Cantora, célebre já nos anos 80,
quando fazia parte da banda Eurythmics,
vendeu cerca de 75 milhões de discos planeta afora e foi premiada com Grammys e
Oscars. Portanto, seu Lattes dispensa apresentações, até mesmo porque as
mulheres escocesas não são conhecidas pelo quesito derrière.
Ocorre
que semana passada a representante de uma rádio comercial americana enviou-lhe
um e-mail dizendo ter apreciado muito suas músicas, que ouvira pela internet.
Até aí nada de novo. Contudo, ato contínuo ao elogio, diz ser coordenadora de
músicas e estar à procura de artistas que considera ter potencial, para
tocá-los em sua rádio.
Não
bastasse apresentar-se como completa desmemoriada, sobretudo tratando-se de seu
mundo, a música, a tal coordenadora pede a Lennox que envie um mp3 de seu
último single, informando que o
encaminharia ao diretor de programação, para ver se ele estaria interessado em
tocá-lo. Completo desconhecimento da comida que mastiga todos os dias! Fosse eu
o dono da rádio!
Mas
fosse a perda da memória um caso localizado de gafe, vá lá! O fato é que tem se
tornado clichê afirmarmos que somos um povo sem memória - veja que já me
locomovi geograficamente. À medida em que envelhecemos, tornamo-nos
autobiográficos, o repertório aumenta, repetimos histórias tal aquela tia velha
lá do interior que, a cada nova visita, nos submete à narrativas há muito
conhecidas. Mas não se trata disso leitor, trata-se da convivência com uma
geração nada curiosa do passado recente, que pouco importa em saber o porquê
disto ou daquilo, a origem, e quiçá, nada afeita à leitura e ao conhecimento.
Basta saber fazer o quadradinho!
Para
esses tantos o conhecimento é descartável, ondulante, limitam-se à última moda,
sem se darem conta de que são, na maioria das vezes, alienados pela indústria
do entretenimento. Esta, embora credite a seus produtos de diversão o status de cultura, tão logo os venda,
inventa outros para assim manter girando a roda do consumo. A cultura, desse
modo, vê-se alijada da sociedade de massas. Afinal, a arte, para o bem ou para
o mal, incomoda o sujeito, interrompe seu sono fantasioso, obriga-o a pensar.
Vem-me
ao espírito a última onda da literatura especializada em sangue, o dos
vampiros. Desconheço-a por inteiro e creio mesmo que ali haja muitos bons
prosadores, contudo, o exercício de engavetamento promovido pela indústria do
entretenimento apaga a cultura passada, de maneira que arrisco afirmar que
apenas uma reduzida gama de leitores dá-se ao trabalho de ir atrás do romance
gótico, de um Abraham Stoker, por exemplo. Este, na toada da historieta da
Annie Lennox, figuraria autor iniciante de potencial sucesso na literatura
vampiresca.
E
não falemos da política torva e sanhuda e suas personagens, cuja defenestração
é mais que merecida; estas, no entanto, sobem à cena e ganham protagonismo a
cada eleição. Culpa de um bando de milhões de desmemoriados e interesseiros,
cujo horizonte não vai além das ideias que rondam o próprio umbigo?
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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