Uma carta é o que deixo
para você leitor, porque viajar é preciso; e quando se viaja o tempo é outro,
não se deve manter a rotina de entregar o texto toda quarta ou quinta-feira. É
preciso algum desprendimento, atrasar a ampulheta ao sabor das descobertas. Por
isso, traduzi a carta que lerá abaixo, deixada por Franz Kafka a Milena Jesenská,
que extraí do site “Des Lettres”.
Franz
Kafka (1883-1924) um dia escreveu que “a facilidade em escrever cartas deve ter
introduzido no mundo uma terrível bagunça de almas: é um comércio com
fantasmas.” Este comércio manteve-se da forma mais intensa com Milena, que
inicialmente foi sua tradutora, e depois, um dos grandes amores de sua vida.
Eles só se viram em duas ocasiões, mas a correspondência entre eles constitui
por si mesma uma estrutura de sofrimento e vazios, um monumento literário de
uma paixão e força raras. Esta carta ilustra um amor alimentado pela falta e pela
ausência, um irresistível jogo de fantasias.
Quinta-feira,
3 de junho de 1920.
Sim,
Milena, esta manhã eu estava nu em meu sofá, metade no sol e metade na sombra,
depois de uma noite quase em claro; como eu poderia dormir quando, desperto
demais, ficava voando ao seu redor, realmente apavorado, exatamente como você
mesma escreveu em sua carta esta manhã: “aquilo que havia caído sobre mim”; assustado
no sentido da palavra quando se diz dos profetas que sendo (ainda? ou já? pouco
importa), que sendo então frágeis crianças pequenas, esperando apenas por uma
voz chamá-las, sentiam-se assustados, não queriam, e fincavam os pés ao chão e
sentiam uma angústia rasgando seus cérebros, porque tendo ouvido vozes antes, eles
não podiam entender de onde vinha o som que os aterrorizava - era esta a
fraqueza de seus ouvidos? era esta a força da voz? - e não sabiam mais porque
eram crianças, porque a voz os havia vencido e se instalado neles em virtude
precisamente desse medo, dessa apreensão divinatória que tinham dela, que por
outro lado não provava nada quanto à sua missão profética, porque muitos ouvem
a voz, mas são eles verdadeiramente dignos dela? É muito duvidoso e é melhor
dizer não de imediato para sentir segurança, tal era o meu estado de espírito
no sofá quando suas duas cartas chegaram.
Há
um traço de caráter, eu acho, Milena, que compartilhamos: somos medrosos, nós
nos assustamos do nada; quase todas as nossas cartas são diferentes, mas quase
todas elas temem aquela que as precede, e mais, aquela que as seguirá. Temerosa,
contudo você não o é por natureza, vê-se isto facilmente; eu mesmo talvez não o
seja mais da mesma maneira, mas isto tornou-se uma segunda natureza, uma vez
que só desaparece no desespero, a rigor, na raiva, e, não esqueçamos, no medo.
Às
vezes tenho a impressão de que vivemos em um mesmo quarto com duas portas, uma de
frente para a outra; cada um tem a maçaneta da sua; apenas um cílio se move em
um, o outro já está atrás da porta; o primeiro acrescenta uma palavra, o outro
já fechou a porta definitivamente, e não o vê mais. Ele será aberto, porque trata-se
de um quarto que não se pode abandonar. Se o primeiro não era como o outro, ele
manterá sua calma, aparentemente acharia melhor não olhar o que fez o segundo e
faria, pouco a pouco, reinar a ordem no quarto como se fosse uma sala
semelhante a todos as outras; ao contrário, da sua porta ele trabalha como
outro, acontece mesmo que cada um esteja atrás de sua porta e que o belo quarto
esteja vazio.
Disso
nascem mal-entendidos cruéis. Você reclama, muitas vezes, Milena, que se pode
escrever e reescrever uma das minhas cartas sem que dela jamais saia coisa
alguma; ora, é justamente isso, salvo algum erro, é uma dessas cartas em que
mais estive perto de você, tão senhor do meu do meu sangue e do seu, tão
embrenhado na floresta, tão descontraído, que realmente não ouvia do outro nada
além do que eu disse: que se via o céu, por exemplo, por entre as árvores; isto
é tudo, uma hora depois repete-se a mesma coisa, e não há nada nisso, é claro,
nem uma única palavra é cuidadosamente pensada. Mas isto não dura, é apenas um
momento, e imediatamente as trombetas da insônia recomeçam a soar.
Considere
ainda, Milena, o estado em que venho até você, considere os trinta e oito anos
de viagem que tenho a oferecer (e até muito mais, porque eu sou um judeu);
quando eu a encontro numa volta aparentemente fortuita da estrada, você, que eu
realmente não esperava ver, especialmente agora, especialmente tão tarde, não
posso gritar, fazer qualquer coisa, nada mais grita em mim; não estou dizendo loucuras
(também não estou falando sobre o que tenho em excesso), e só sei que estou de
joelhos vendo seus pés perto dos meus olhos, acariciando-os.
Não me peça para ser sincero,
Milena. Ninguém pode exigir mais sinceridade de mim do que eu mesmo, mas muitas
coisas estão além de mim, talvez por isso elas me escapem. Incentivar-me a
procurá-las não é me encorajar, ao contrário, não posso fazer nada menos que
isso, de repente, tudo se torna uma mentira, e é a caça que está a estrangular
o caçador. Estou em um caminho muito perigoso, Milena. Você, você está
firmemente plantada ao pé de uma árvore, jovem, bonita, e o brilho de seus
olhos elimina o sofrimento do mundo. Nós jogamos “muda, muda, pequena árvore”,
eu escorreguei na sombra, de uma árvore para outra, estou no meio do caminho,
você me chama, você me avisa dos perigos, você quer me dar coragem, meus passos
incertos a assustam, você me lembra (a mim!) da gravidade do jogo, eu não posso
mais, eu caio, eu estou por terra. Não posso mais ouvir ao mesmo tempo a sua
voz e as vozes terríveis do mundo interior, mas posso escutá-las e confiar em
você como em qualquer outra pessoa neste mundo.
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