Revista Philomatica

sábado, 21 de outubro de 2017

Asfixia cultural e de ideias

Tem sido cada vez mais difícil seguir a parábola à risca, digo, separar o joio do trigo. Não à toa, hoje, na dita pós-modernidade, quando até mesmo os ideais iluministas surgem comprometidos com os jogos do poder, é frequente que você, leitor, encontre nas páginas sociais de seus amigos a profecia de Aldous Huxley, que vaticinou dias em que a ditadura teria a aparência perfeita de uma democracia, constituindo-se numa prisão da qual os prisioneiros jamais experimentariam o desejo da fuga. Nesse sistema, afirma Huxley, os escravos teriam amor à escravidão, tal o grau de amor pelo consumo e o divertimento.

Por essa razão, desconfio de tudo o que leio e estou sempre à espreita das intenções por trás das palavras, sobretudo quando estas se fazem dissimuladas, surrupiando-nos qualquer entendimento das entrelinhas. Quando tudo é pautado pela ausência de clareza, de imparcialidade e de posicionamentos, até mesmo aqueles que militam por uma causa, desconfio, alienam-se palavra após palavra.

Vejam: há bem pouco tempo as mulheres foram levadas a alisar seus cabelos; negras e brancas saíram às compras e, ávidas por possuírem aqueles aparelhinhos que esticam até os fios mais rebeldes, empregaram ali todo o seu dinheiro. Esgotado o interesse, o mercado veio à cena e passou a dizer que o chique são os cabelos cacheados; a mulherada saiu em fúria à busca de shampoos que encaracolam os fios, a ponto de os cabelos surgirem como sinonímia do orgulho da raça.

Com os obesos não é diferente: a indústria descobriu que eles significam cifrões em montante superior àqueles ganhos pela indústria farmacêutica ou médica com as tais cirurgias de redução de estômago. A indústria sub-repticiamente incensou o repúdio à gordofobia, neologismo que descortinou a possibilidade da moda plus size, e as marcas faturaram ainda mais com obesos orgulhosos da ausência de suas cinturas. A imprensa, dizendo-se politicamente correta, hoje afirma que é legal ser gordo e que o must é ostentar logo abaixo do abdômen um singelo pneu de bicicleta - ou de moto.

O mesmo acontece com os gays. De fato, quem mais luta contra o preconceito contra gays e lésbicas, e outros quotidianamente discriminados e segregados, é a indústria. Esta senhora descobriu que gays e lésbicas, por não terem a preocupação com a prole, tem lá seus caraminguás para gastar, por isso, e só por isso, o gay merece respeito. Observem as propagandas: as marcas envolvem-se em tais questões visando sempre o vil metal. Agora, enquanto escrevo, não me ocorre o nome de uma grande empresa que invista seu nome e dinheiro em socorro ao terceiro sexo, quando este é vilipendiado e ultrajado nas ruas, por meio de suporte às delegacias e organizações que se ocupam disso.

E a imprensa? Como age? De que modo você é alienado por ela? Você tem controle sobre o que gosta ou deixa de gostar? Sobre as pessoas que admira ou não nutre qualquer empatia? A arte que você aprecia, você a admira porque emocionalmente você compreende, sente, respira, inspira o objeto, ou porque o crítico do jornal com o qual você ideologicamente se identifica diz que aquilo é uma arte comprometida, combativa, humanista ou sei lá o quê?

Formas e limites são constantemente superados e a imprensa vale-se disso até mesmo para vender seus jornais, ter o seu like, e, quanto mais longa a lista de comentários medíocres, mais tem-se a prova de que o convencimento foi efetivo do ponto de vista mercadológico.  

Nessa lógica, o marketing todo poderoso é que guia e manipula seus gostos e seus prazeres. Este senhor faz com que, por exemplo, você opte por esta ou aquela música, direcione sua atenção para aquele site específico que se anuncia como a maior empresa de comunicação do país e que, neste site, você tenha “o embate do século” como uma das notícias mais lidas. O “embate” no caso é a troca de tiros entre uma policial e uma traficante, personagens de um folhetim; ou, ainda, que você vibre com a nota sobre um certo roqueiro que “embarangou”.

Você, leitor, é convidado a reverenciar isto ou aquilo, este ou aquele, em consonância aos desejos da publicidade. Não é fácil escapar deste processo de asfixia. Quando se tenta debater contra este estado de coisas, muitas vezes, a comunicação não funciona e há excessos de mal entendidos. Recusar-se a engolir o que a publicidade lhe oferece, gera, quase sempre, o pensamento de que você é contra o genuinamente popular, que brota das massas, que é a vida como ela é, tudo, é claro, porque você deve ser um, sei lá, elitista. Não à toa, professores e críticos literários são relativizados por escreverem sobre o cânone, a chamada alta literatura.

Hoje produzimos poemas e versos sobre mundos flutuantes e sem significado. Pensando nisso, lembrei-me de “A obra aberta” (1965), texto de meu padre santo Umberto Eco. Hoje, não se tem mais obras prontas à apreciação, mas conceitos. Tudo pode ser lido e treslido à maneira daquele que aprecia, é claro, mas o complicador é que o Grande Irmão direciona o olhar, coloca cabrestos e anula a visão periférica.

Perdido o foco, sua opinião é esfacelada, instaura-se então a dispersão e o fragmentário, de modo que surgem quotidianamente especialistas sobre tudo; muitos são os artigos que preenchem páginas e mais páginas, que, uma vez torcidas, não são capazes de mantê-lo em reflexão por mais de uma ou duas horas. Tudo é efêmero e, quanto mais volátil, mais a senhora publicidade funciona no intuito de fazê-lo crer na próxima ideia, levando-o a lutar por ela, indispor-se por ela, enfim, vibrar com ela junto dos seus caros amigos.

Tudo é indeterminação e a arte, por exemplo, parece saída de uma linha de produção, tal a similaridade com que se expõe. É certo que um ou outro artista zombe da efemeridade e tente imprimir sua digital na linha do tempo, procurando continuar de onde a arte parou. Mas são aqueles poucos que clamam no deserto do marketing. Ocorre-me agora que estão fadados ao desaparecimento, haja vista não haver mais mecenas e tudo depender da boa venda do produto.
É isto o contemporâneo; um diálogo em que as obras dos artistas modernos conversam com aquelas que fizeram história, tal a Mona Lisa, exaustivamente recriada em função das polêmicas multiculturais?

Disperso, à espera da próxima moda, da próxima música, da próxima arte ou da próxima literatura que a imprensa me fará amar, encerro essas garatujas, ao menos satisfeito pelo fato de a indústria tornar alguns assuntos mais palatáveis aos preconceituosos, permitindo que minorias continuem a respirar.


Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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