Revista Philomatica

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Da cura gay: ou sobre legisladores de rabicós

A historieta abaixo, leitor, não obedece à cronologia alguma. Por isso personagens e dados, aleatoriamente, ora avançam no tempo, ora regridem e misturam-se em proveito das personagens.
Tudo passou-se em um país distante, mas veja, pode ser que tudo esteja a acontecer agora, no instante mesmo em que você lê essas garatujas. O país fazia - ou faz - fronteira com o pays de oreillons, da também célebre historieta de autoria daquele senhor de quem se dizia que quando pretendia atacar o diabo do homem, acabava-se por ferir a virtude.
Pois bem, na primavera de 1207, ou 2017, que seja, reuniram-se os sábios para deliberarem sobre questão de extrema importância para o futuro do país. Dela dependiam a educação, a segurança, a saúde e até mesmo a economia, porque a esta última, os habitantes do país, digo, a aristocracia, creditava máxima importância, fazendo vista grossa até mesmo à corrupção que se alastrava por todas as castas e hierarquias, dos mais simplórios à intelligentsia.
Os sábios, também chamados de magistrados, decidiram naquela primavera que parte da população era doente. A razão nunca fora muito bem explicada, mas o fato é que toda a questão girava em torno do rabicó. Não o rabicó em si, se é que me entendem, mas ao que os habitantes do país decidiam fazer com ele. Insuflados por alguns barões levitas que bradavam versos de um manual, na impossibilidade de exterminar todos os que se diziam donos de seus rabicós, decidiram pela cura.
Propositadamente - ou não -, levitas e magistrados, ainda que soubessem que legislar sobre o rabicó de outrem não lhes dizia respeito, tornaram-se cada vez mais imperativos e ditaram leis. De fato, não se preocupavam com as questões fisiológicas e de saúde, pois, o que queriam mesmo era controlar o que pensava esse grupo que se achava dono de seus rabicós e que, portanto, dizia às desbragadas que faria o que quisesse com eles, os rabicós, algo, claro, inconcebível para levitas e magistrados.
A ideia da doença, e consequentemente da cura, talvez tenha mesmo se originado entre os levitas, pois há registros de alguns que, nas horas mortas, liberavam seus rabicós em boates e becos da cidade. Depois, fatigados, decidiram receber visitas pela porta da frente, proclamando-se curados. Mas, há quem diga que tudo isso é lorota e que eles continuam a lacrar (neologismo que para sua exata compreensão deve ser lido como antonímia). Inspirada com os episódios de cura, a família tradicional, hipócrita e em busca da perfeição, começou a procurar por shamans que diziam prescrever terapias capazes de mudar radicalmente as escolhas de seus filhos; a maioria dos shamans, diga-se, eram na verdade oportunistas ávidos pelo lucro patrocinado pela intolerância familiar.
De fato, o que incomodava mesmo levitas e magistrados era a escolha em si, a liberdade de decidir o que fazer, como fazer, com quem fazer, quando fazer. Receber visitas, seja pela porta da frente, seja pela dos fundos, não fazia dos habitantes detentores de melhor ou pior caráter, muito pelo contrário, mas, eles, os legisladores de rabicós, não concebiam a ideia de liberdade implícita na escolha; e não falo só da liberdade de expressão, fazer tudo o que der na veneta, como dizia minha vozinha, mas sobretudo da liberdade de fazer o que quiser com seu corpo. Ah, isso era demais para os levitas e magistrados! Diziam eles que tamanha liberdade poderia contaminar outros habitantes, esquecendo-se de que escolhas são escolhas - e pessoais.
Decretada a cura, o ministério da verdade terá que se ver com questões menores, tais como: a regulamentação da doença no código internacional de saúde, uma vez que a anomalia é tupiniquim e só atinge país; o grupo dos rabicós livres podem, por pirraça, decidir faltar ao trabalho alegando a tal doença, e aí, como fazer? Os atestados médicos, como preenchê-los? As perícias no malfadado sistema de saúde, como organizá-las? Chamadas de socorro ao SAMU: qual a prioridade, um atropelamento ou um rabicó sedento por aventura? Uma vez instalada a doença, como proceder com a aposentadoria em casos de doentes terminais, aqueles acostumados a pôr o rabicó na roda?
Apreensivos, os considerados “doentes” temem que práticas ainda anteriores a 1207 sejam colocadas em uso. À humilhação diária, bom que se diga, nunca deixaram de expor sua insatisfação, pois conheciam seus direitos, mas isso incomodava muito levitas e magistrados.
Por fim, o povo desse país, que um dia o chamou de ‘país do futuro, perdeu-se totalmente no calendário. Uns acreditavam estar em 2017, outros em 1207, outros ainda, mais desesperançados, acreditavam que estavam ainda antes no tempo. Mas nem tudo estava perdido: tinham rádio e, para localizarem-se no tempo, habitualmente, não só o povo, mas também levitas e magistrados ligavam seus aparelhos. Hora ou outra, depois de alguma notícia, a música soava forte e, para desespero de uns e alegria de outros, que não se continham, as ondas sonoras tornavam-se palavras e, dizem, até mesmo magistrados e levitas punham-se a cantarolar Dancing Queen e It’s raining men.


 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

Nenhum comentário:

Postar um comentário