A
historieta abaixo, leitor, não obedece à cronologia alguma. Por isso
personagens e dados, aleatoriamente, ora avançam no tempo, ora regridem e
misturam-se em proveito das personagens.
Tudo
passou-se em um país distante, mas veja, pode ser que tudo esteja a acontecer
agora, no instante mesmo em que você lê essas garatujas. O país fazia - ou faz
- fronteira com o pays de oreillons,
da também célebre historieta de autoria daquele senhor de quem se dizia que quando
pretendia atacar o diabo do homem, acabava-se por ferir a virtude.
Pois
bem, na primavera de 1207, ou 2017, que seja, reuniram-se os sábios para
deliberarem sobre questão de extrema importância para o futuro do país. Dela
dependiam a educação, a segurança, a saúde e até mesmo a economia, porque a
esta última, os habitantes do país, digo, a aristocracia, creditava máxima
importância, fazendo vista grossa até mesmo à corrupção que se alastrava por
todas as castas e hierarquias, dos mais simplórios à intelligentsia.
Os
sábios, também chamados de magistrados, decidiram naquela primavera que parte
da população era doente. A razão nunca fora muito bem explicada, mas o fato é
que toda a questão girava em torno do rabicó. Não o rabicó em si, se é que me
entendem, mas ao que os habitantes do país decidiam fazer com ele. Insuflados
por alguns barões levitas que bradavam versos de um manual, na impossibilidade
de exterminar todos os que se diziam donos de seus rabicós, decidiram pela
cura.
Propositadamente
- ou não -, levitas e magistrados, ainda que soubessem que legislar sobre o
rabicó de outrem não lhes dizia respeito, tornaram-se cada vez mais imperativos
e ditaram leis. De fato, não se preocupavam com as questões fisiológicas e de
saúde, pois, o que queriam mesmo era controlar o que pensava esse grupo que se
achava dono de seus rabicós e que, portanto, dizia às desbragadas que faria o que
quisesse com eles, os rabicós, algo, claro, inconcebível para levitas e
magistrados.
A
ideia da doença, e consequentemente da cura, talvez tenha mesmo se originado entre
os levitas, pois há registros de alguns que, nas horas mortas, liberavam seus
rabicós em boates e becos da cidade. Depois, fatigados, decidiram receber
visitas pela porta da frente, proclamando-se curados. Mas, há quem diga que
tudo isso é lorota e que eles continuam a lacrar (neologismo que para sua exata
compreensão deve ser lido como antonímia). Inspirada com os episódios de cura,
a família tradicional, hipócrita e em busca da perfeição, começou a procurar por
shamans que diziam prescrever terapias capazes de mudar radicalmente as escolhas
de seus filhos; a maioria dos shamans, diga-se, eram na verdade oportunistas
ávidos pelo lucro patrocinado pela intolerância familiar.
De
fato, o que incomodava mesmo levitas e magistrados era a escolha em si, a
liberdade de decidir o que fazer, como fazer, com quem fazer, quando fazer.
Receber visitas, seja pela porta da frente, seja pela dos fundos, não fazia dos
habitantes detentores de melhor ou pior caráter, muito pelo contrário, mas,
eles, os legisladores de rabicós, não concebiam a ideia de liberdade implícita
na escolha; e não falo só da liberdade de expressão, fazer tudo o que der na
veneta, como dizia minha vozinha, mas sobretudo da liberdade de fazer o que
quiser com seu corpo. Ah, isso era demais para os levitas e magistrados! Diziam
eles que tamanha liberdade poderia contaminar outros habitantes, esquecendo-se
de que escolhas são escolhas - e pessoais.
Decretada
a cura, o ministério da verdade terá que se ver com questões menores, tais
como: a regulamentação da doença no código internacional de saúde, uma vez que
a anomalia é tupiniquim e só atinge país; o grupo dos rabicós livres podem, por
pirraça, decidir faltar ao trabalho alegando a tal doença, e aí, como fazer? Os
atestados médicos, como preenchê-los? As perícias no malfadado sistema de
saúde, como organizá-las? Chamadas de socorro ao SAMU: qual a prioridade, um
atropelamento ou um rabicó sedento por aventura? Uma vez instalada a doença,
como proceder com a aposentadoria em casos de doentes terminais, aqueles acostumados
a pôr o rabicó na roda?
Apreensivos,
os considerados “doentes” temem que práticas ainda anteriores a 1207 sejam
colocadas em uso. À humilhação diária, bom que se diga, nunca deixaram de expor
sua insatisfação, pois conheciam seus direitos, mas isso incomodava muito levitas
e magistrados.
Por
fim, o povo desse país, que um dia o chamou de ‘país do futuro, perdeu-se
totalmente no calendário. Uns acreditavam estar em 2017, outros em 1207, outros
ainda, mais desesperançados, acreditavam que estavam ainda antes no tempo. Mas
nem tudo estava perdido: tinham rádio e, para localizarem-se no tempo,
habitualmente, não só o povo, mas também levitas e magistrados ligavam seus
aparelhos. Hora ou outra, depois de alguma notícia, a música soava forte e,
para desespero de uns e alegria de outros, que não se continham, as ondas
sonoras tornavam-se palavras e, dizem, até mesmo magistrados e levitas
punham-se a cantarolar Dancing Queen e
It’s raining men.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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