Se
há um ponto fértil na linguagem, talvez seja sua capacidade de criar clichês.
Vira e mexe, frases e expressões são criadas pelo imaginário popular; algumas,
por terem seus rastros entranhados nas vísceras sociais, permanecem; outras,
forçadas por crises morais, a violência, a pobreza cultural e as ideologias de
bolso, passam rapidamente e caem no lixo comumente chamado de arcaísmo.
“Uma
conversa leva à outra” ou “o mar não está para peixe” são exemplos de clichês
que permanecem, embora adaptados livremente à critério do freguês. A conversa,
o peixe e até o mesmo o mar adquirem conotações diversas e funcionam como
grande conectores de linguagem, adiantando a prosa. Pois bem, cheguei até aqui
a partir da notícia de que o mar tem avançado a ponto de destruir a faixa de
areia e muitas casas na orla da Baía da Traição, no norte da Paraíba. Culpa de
quem? Da natureza? Oh, não, caro leitor. Penso que seja mesmo desse sapiens que mete o nariz em tudo.
E
como uma conversa leva à outra, saí da Traição, pensei no mar de lama alma de
Brasília, onde todos se traem e são traídos, pensei no mar do Caymmi que quando
quebra na praia é bonito, é bonito...
Divaguei...
Pensei
no mar que inspirou poetas e escritores, os mais diversos. Embora leia com
frequência os franceses, o primeiro que me veio ao espírito foi o sacrossanto
Hemingway com O Velho e o Mar,
romance de 1952. E, como uma conversa
leva à outra, resolvi remexer as páginas literárias de dois importantes
periódicos. Lamentável. Lá, vi que o mar não está para livros. À medida que
corria os olhos na página, os dedos apressados não se continham à procura de
alguma poesia, o scroll down enlouquecido
descia a ladeira... e nada! Cadê o mar, Caymmi?
O
que vi nos cadernos dedicados à literatura foi muita informação sobre obras e
escritores estrangeiros. Da terrinha, pouco, muito pouco! Marcelo Mirisola, uma
coletânea de Ruy Castro, Trêfego e
Peralta e as elucubrações de uma filósofa-celebridade - ou seria uma celebridade-filósofa?
E só!
Na
falta de... voltei à areia, botei os pés na água e me veio ao espírito um
livrinho já adolescente de Simon Leys, La
mer dans la littérature française (2003), uma reunião de textos literários
de autores de expressão francesa, inspirados pelo oceano.
No
prefácio dessa deliciosa coletânea, Simon Leys, de pronto, traz o problema ao
leitor: “Entre os rumores dos homens de letras (que falam daquilo que não
sabem) e o silêncio dos homens do mar (que sabem, mas falam pouco), felizmente
havia alguns marinheiros que começaram a escrever e alguns escritores que
sabiam navegar.” E, felizmente, para nós, Simon Leys conseguiu e soube pescar
pérolas raríssimas.
De
certo modo, sua coletânea nos mostra porque clássicos são clássicos. Erudito,
caprichoso e especialista de espírito livre e perspicaz, Leys nos surpreende
com velhas histórias. Partindo de Rabelais, sua odisseia literária é das mais
interessantes: da memorável cena em que Panurge (Quarto livro) fica enjoado por ter se alimentado de peixe scatophage, passa às primeiras
tentativas de se usar a linguagem do mar na literatura, visita escritos dos
corsários (Duguay-Trouin) e nos reconta a incrível história do condenado Jean
Martheilhe.
Mas,
segundo Leys, a França precisou esperar por Eugène Sue para que, de fato,
tivesse seu romance marítimo. Conhecido por sucessos como Les mystères de Paris e Le
Juif errant, Sue é um dos pioneiros do gênero, sobretudo por sua obra de
juventude, La Salamandre.
E
tem mais: Michelet, que, embora jamais tenha colocado os pés na água, escreveu
páginas dentre as mais curiosas e cômicas da literatura marítima. Em La Mer, Michelet observa os elementos a
partir da costa, divide o mundo dos moluscos entre “comedores e sugadores”,
conta a epopeia de uma guerra entre crustáceos e se debruça sobre o fenômeno do
“mar de leite”, quando “a água do mar, mesmo a mais pura, em retirada e longe
de qualquer mistura, é ligeiramente esbranquiçada e um pouco viscosa”.
E,
é óbvio, Leys não se esqueceu de Hugo, passando por Les Misérables (Os Miseráveis)
e Les Travailleurs de la mer (Os Trabalhadores do Mar), muitíssimo bem
traduzido por Machado de Assis.
Eis
um dos encantos da literatura: Leys viaja ao redor do arquipélago literário
francês, mas nada impede que passemos por outras paragens, entregando-nos a
poemas, canções e romances cujas ondas nos enlevem, nos deem algum prazer e
alguma amnésia, fazendo com que esqueçamos a lama que teima em se liquefazer
sobre esse torrão de meu Deus. Afinal, o mar quando quebra na praia é bonito, é
bonito...
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