Revista Philomatica

quarta-feira, 25 de julho de 2018

A guerra necessária



Não faço mais qualquer referência à fala de Eco, meu padre santo, que em um de seus momentos de iluminação - e face a tamanha obviedade -, afirmou que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. O genial de Eco é a escolha das palavras, afinal legioni refere-se tanto a demônios quanto a soldados, e, diante do patrulhamento que campeia no campo aberto e minado das redes sociais, é mesmo possível que as legiões sejam compostas de tudo, exceto de anjos.
Mas não generalizemos! Há pérolas! É certo que na maioria das vezes, mesmo que as intenções sejam as melhores, elas parecem ir de encontro aos preceitos do Mestre e acabam mesmo é na cocheira dos porcos. Mas, se formos atentos e pacientes, em meio a toda essa farofada que nos é servida, alimentamo-nos de iguarias. Dias atrás, assisti entrechos de uma entrevista com a física e pensadora Vandana Shiva. Refletindo sobre suas palavras, sinto uma brisa e, por segundos, vejo desvanecer as fronteiras do meu ceticismo.
Hoje, diz-nos Shiva, nosso maior desafio é lutar contra a estupidez. Para isso, a pensadora oferece-nos uma série de exemplos, dentre os quais, alguns sobre a destruição dos sistemas aquífero, alimentício e climático. Ao fazê-lo, argumenta que os poderosos (e seus cientistas) partem da ideia de que acabada a água e a comida encontraremos um substituto. A pergunta que ela coloca, “há substitutos para as verdadeiras coisas que fazem com que a vida funcione?” soa instigante e desafiadora a certo cientificismo que insiste no substituto. É fato que a comida industrial que ingerimos tem feito muito mal à nossa saúde. Casos são reiteradamente discutidos na imprensa, ainda que sob o filtro do poder da indústria, mas as migalhas que chegam a nós surgem como pérolas de advertência. Talvez por isso um eco de memória me traga aquele americano que dizia ser melhor descascar que desembalar. O fato é que Shiva é de uma lucidez escassa nos dias de hoje, por isso, rara.
A estupidez é profunda; todo o esforço para extirpar do solo a planta, quando muito, resulta em um punhado de folhas que preenche as mãos, é superficial. O orvalho da manhã, a regar o solo, refresca as raízes e evidencia o absurdo da vida à medida que os novos brotos surgem verdejantes.   
A semana foi fértil: na Indonésia, aldeões mataram perto de 300 crocodilos para vingar a morte de um morador, que acreditavam ter sido morto por um dos répteis. Vale lembrar que no país os crocodilos fazem parte das espécies protegidas por lei. O grau de estupidez que regeu os aldeões - espécie sapiens, acredita-se - fica a critério do leitor decidir.
Em ponto pequeno, Hierophant, página das redes sociais, contribuiu com sua dose de estupidez. A remissão do nome a uma pessoa que interpreta mistérios esotéricos, vá lá, justifica-se, haja vista a página ter publicado artigo no qual relaciona a hora em que se acorda durante a noite com a situação do estado físico e emocional da pessoa. E afirma: trata-se de medicina chinesa. Acreditei. Afinal, a China é tão distante e só mesmo com um botão é que podemos matar um mandarim e herdar toda a sua fortuna sem que tenhamos qualquer implicação jurídica. Não acreditas, leitor? Balzac, Rousseau, Monier, Chateaubriand, Machado e outros estão aí e não me deixam mentir.
Mas, convenhamos: a estupidez maior veio com a vitória da França sobre a Croácia. Como todos os jogadores integrantes da seleção francesa são negros, exceto o goleiro - o que não deixa de ser sintomático -, o ulular dos que perderam foi tonitruante. Por todo o planeta, afirmou-se o óbvio ululante, inferindo certo racismo, dado o franco grau de seletividade. Explico-me: tratando-se de um imigrante africano pobre, o origem bleue normalmente lhe é renegada, porém os francos, ao vê-lo tornar-se vitorioso, outorgam-lhe o status de um français de souche (francês da gema).
Os franceses, é claro, multiculturalistas, afirmam ser os comentários racistas; para isso lançam mão de todo o arsenal teórico que entope mentes e bibliotecas e dizem se orgulhar de sua nação multicultural, ignorando o paradoxo que, por tradição, não explica o porquê de embora seu tataravô, bisavô, avô e pai terem nascido ao lado da cabana de Astérix, você ainda ser sempre un français d’origine brésilienne – isto, é claro, se seu tataravô um dia abandonou o calor das tropicais florestas tupiniquins para sentir os ares gelados da Bretanha. E voilà, de estupidez entupimo-nos todos, nos trópicos e nos meridianos - e quotidianamente.

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