Não
faço mais qualquer referência à fala de Eco, meu padre santo, que em um de seus
momentos de iluminação - e face a tamanha obviedade -, afirmou que as redes
sociais deram voz a uma legião de imbecis. O genial de Eco é a escolha das
palavras, afinal legioni refere-se
tanto a demônios quanto a soldados, e, diante do patrulhamento que campeia no campo
aberto e minado das redes sociais, é mesmo possível que as legiões sejam compostas
de tudo, exceto de anjos.
Mas
não generalizemos! Há pérolas! É certo que na maioria das vezes, mesmo que as
intenções sejam as melhores, elas parecem ir de encontro aos preceitos do
Mestre e acabam mesmo é na cocheira dos porcos. Mas, se formos atentos e
pacientes, em meio a toda essa farofada que nos é servida, alimentamo-nos de
iguarias. Dias atrás, assisti entrechos de uma entrevista com a física e
pensadora Vandana Shiva. Refletindo sobre suas palavras, sinto uma brisa e, por
segundos, vejo desvanecer as fronteiras do meu ceticismo.
Hoje,
diz-nos Shiva, nosso maior desafio é lutar contra a estupidez. Para isso, a
pensadora oferece-nos uma série de exemplos, dentre os quais, alguns sobre a
destruição dos sistemas aquífero, alimentício e climático. Ao fazê-lo,
argumenta que os poderosos (e seus cientistas) partem da ideia de que acabada a
água e a comida encontraremos um substituto. A pergunta que ela coloca, “há
substitutos para as verdadeiras coisas que fazem com que a vida funcione?” soa
instigante e desafiadora a certo cientificismo que insiste no substituto. É
fato que a comida industrial que ingerimos tem feito muito mal à nossa saúde.
Casos são reiteradamente discutidos na imprensa, ainda que sob o filtro do
poder da indústria, mas as migalhas que chegam a nós surgem como pérolas de
advertência. Talvez por isso um eco de memória me traga aquele americano que
dizia ser melhor descascar que desembalar. O fato é que Shiva é de uma lucidez
escassa nos dias de hoje, por isso, rara.
A
estupidez é profunda; todo o esforço para extirpar do solo a planta, quando
muito, resulta em um punhado de folhas que preenche as mãos, é superficial. O orvalho
da manhã, a regar o solo, refresca as raízes e evidencia o absurdo da vida à
medida que os novos brotos surgem verdejantes.
A
semana foi fértil: na Indonésia, aldeões mataram perto de 300 crocodilos para
vingar a morte de um morador, que acreditavam ter sido morto por um dos
répteis. Vale lembrar que no país os crocodilos fazem parte das espécies
protegidas por lei. O grau de estupidez que regeu os aldeões - espécie sapiens, acredita-se - fica a critério do leitor decidir.
Em
ponto pequeno, Hierophant, página das
redes sociais, contribuiu com sua dose de estupidez. A remissão do nome a uma
pessoa que interpreta mistérios esotéricos, vá lá, justifica-se, haja vista a página
ter publicado artigo no qual relaciona a hora em que se acorda durante a noite com
a situação do estado físico e emocional da pessoa. E afirma: trata-se de
medicina chinesa. Acreditei. Afinal, a China é tão distante e só mesmo com um
botão é que podemos matar um mandarim e herdar toda a sua fortuna sem que tenhamos
qualquer implicação jurídica. Não acreditas, leitor? Balzac, Rousseau, Monier,
Chateaubriand, Machado e outros estão aí e não me deixam mentir.
Mas,
convenhamos: a estupidez maior veio com a vitória da França sobre a Croácia.
Como todos os jogadores integrantes da seleção francesa são negros, exceto o
goleiro - o que não deixa de ser sintomático -, o ulular dos que perderam foi
tonitruante. Por todo o planeta, afirmou-se o óbvio ululante, inferindo certo
racismo, dado o franco grau de seletividade. Explico-me: tratando-se de um
imigrante africano pobre, o origem bleue
normalmente lhe é renegada, porém os francos, ao vê-lo tornar-se vitorioso,
outorgam-lhe o status de um français de souche (francês da gema).
Os
franceses, é claro, multiculturalistas, afirmam ser os comentários racistas;
para isso lançam mão de todo o arsenal teórico que entope mentes e bibliotecas
e dizem se orgulhar de sua nação multicultural, ignorando o paradoxo que, por
tradição, não explica o porquê de embora seu tataravô, bisavô, avô e pai terem nascido
ao lado da cabana de Astérix, você ainda ser sempre un français d’origine brésilienne – isto, é claro, se seu tataravô
um dia abandonou o calor das tropicais florestas tupiniquins para sentir os
ares gelados da Bretanha. E voilà, de
estupidez entupimo-nos todos, nos trópicos e nos meridianos - e quotidianamente.
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