“A
releitura é quase sempre fatal para a maioria absoluta da narrativa ficcional
brasileira.” O dito de Alfredo Mesquita, se levado à risca, é um convite ao
abandono da releitura e, quiçá, da leitura. Principalmente hoje, quando o
grosso das narrativas vem até nós por meio de spoilers, sejam estes garatujas fabricadas nas cozinhas
“literárias”, sejam amigos leitores, de modo que a fábula perde um pouco do seu
encantamento, pois já foi, digamos, conspurcada por opiniões outras. Estas, às
vezes, nos abrem caminhos ao conhecimento, outras vezes, porém, nos embotam as
sinapses, fazendo com que o desânimo se apodere de nosso espírito, o que
resulta no abandono do livro. A crítica ou o entusiasmo alheio comprometem nossa
leitura. Não generalizo, leitor: e se trago essa reflexão é no intuito de
induzi-lo à abstração, a fim de que desconsidere muitos comentários, sobretudo aqueles
ancorados nas circunstâncias, resultado das polêmicas fluídas que atribulam as
mentes nesses dias tecnológicos.
Mas
nem toda releitura é perda de tempo. Há textos que se preservam no tempo e,
revelados, trazem-nos a sensação de descoberta, sentimo-nos arqueólogos de
ideias. A releitura cumpre a função da flanela suave que desliza sobre a capa
incunábulo afastando o pó acumulado ao longo dos anos. A releitura também une
pontos de reflexões, atualiza as ideias, desvela a sensibilidade do texto,
ressuscita mundos da entrelinhas, enfim, produz uma fermentação que estabelece
diálogos entre autores e obras e, por que não, leitores?
Em
tom confessional, revelo, foi o que me aconteceu esta semana. Ao reler um texto
Antonio Candido, “O Portador”, em que o crítico reflete sobre a obra de
Nietzsche, foi me impossível não estabelecer conexões em as ideias do filósofo
e a obra de Philip Roth, que acabara de ler. Nietzsche afirma que “o homem é um
ente que deve ser ultrapassado”. Ora, o extrato do texto nietzschiano, extirpado
de seu contexto, e em mãos erradas, pode induzir o leitor a um atalho que
compromete o raciocínio, levando-o a sustentar ideias obscuras. Contudo, o
filósofo propõe ao homem que abandone e ultrapasse o ser de conjuntura, que
somos em determinado momento, para, à frente, buscarmos estados mais eficazes e
completos de humanização.
Ora,
para isso Nietzsche sugere alguma dureza e a abolição da autocomplacência, qual
seja, ser franco, honesto e direto consigo e com os outros. Ultrapassar as
ideias ligadas às conjunturas emerge como repudio às filosofias e ideologias
que cuidam mais da natureza do espírito e que soa, às vezes, meio autoajuda,
para debruçar-se sobre o caráter, a ética, aspectos da atividade humana total.
Philip
Roth, em A marca humana, relata a
história de Coleman Silk, professor de letras clássicas que, após ter empregado
uma palavra de duplo sentido, vê-se obrigado a pedir exoneração da universidade
onde leciona, acusado de racismo ao referir-se a dois alunos que jamais
compareceram às aulas. De forma cursiva, Roth trata-se das circunstâncias e
conjunturas que movem os interesses dos diferentes professores da faculdade,
lugar em que indivíduos supostamente portadores de conhecimento, vigor moral e
intelectual, conspiram para a derrocada de Silk, em uma mostra de como a
compreensão das pessoas, sob qualquer situação, é, no mínimo das vezes,
ligeiramente equivocada.
Roth
mostra que em meio ao ruído que acompanha as conjunturas que movem os
interesses, a única opção talvez seja o silêncio. Este, face a confusão do
mundo, emerge como antídoto para que sobrevivamos com um mínimo de sofrimento.
Ao deslindar os embates de Silk face às atitudes nada ética de seus colegas de
profissão, Roth tece uma narrativa cuja trama almeja – e consegue – dar conta
de uma atividade humana total, em que o homem ultrapassa o homem, ainda que
sedimentada nas questões de circunstâncias. Isso porque delas extrai a essência
que dá liga às sensibilidades humanas sem o desprezo pelas ideias, não raro, encimadas
pela razão.
Talvez
por isso, Silk, o professor, depois de recuperar um departamento outrora fadado
ao ostracismo, revela todo o seu ceticismo com o meio universitário, lugar
marcado pela esterilidade intelectual. É claro, leitor, ao replicar isto, tomo
o partido de Silk (e não conto seu segredo para não ser também um
estraga-prazer), mas também vejo as circunstâncias, pois, não se pode negar que
hoje há uma maioria que não coaduna discurso e ação. Para essa maioria, a marca
humana é a hipocrisia, regada a um processo de sentimentalização de pessoas e
situações, que lhe dá azo a rotular este ou aquele cultural e pejorativamente
porque não compartilha de suas ideias e cabalas, adotando, de forma reptícia,
sob o manto multicultural, uma postura de superioridade que, nas faculdades de
letras, sobretudo, depõe contra a literatura.
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