Revista Philomatica

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Era uma vez...


Era uma vez... A maioria das histórias infantis - e mesmo alguns contos filosóficos, como os de Voltaire -, trazem como principal constitutivo o fantástico; o cenário remete a reinos distantes; as narrativas constroem-se a partir do imaginário; as personagens, envoltas em total fantasia, deixam-se levar pelo capricho injustificável ou descontrolado da vontade ou da fábula, sem base alguma em realidades concretas. Não raro, trata-se de um mundo de total esquisitice e excentricidade, do qual desprende-se um fundo moral, provável tentativa de moldar a personalidade da criança, para muitos, ainda tabula rasa.
Ainda que Chapeuzinho tenha conseguido tirar a vovó da barriga do lobo, a Bela Adormecida, livrar-se de Malévola e casar-se com o príncipe, Branca de Neve ver a rainha pelas costas e, de quebra, juntar-se com outro príncipe, as três viveram instantes de medo e terror, este, por sinal, matéria-prima de histórias de meninos e homens.
O cenário político que se desenhou a partir do primeiro turno das eleições presidenciais, parece-me, só não traz o “cenário” de pitoresco, no mais, todos os outros elementos estão lá e só nos resta saber qual fundo moral há de se tirar de tudo isso.
Hoje, nas redes sociais, nota-se verdadeira confrontação entre o Bem e o Mal, maniqueísmo cuja natureza faz com que ambos os grupos atribuam a si o direito de opinião, o “estar certo”. Nesse conflito cósmico entre o Reino da Luz e o Reino das Sombras, penso, há muito mocinhos e mocinhas perderam a visão periférica e hoje sequer enxergar um palmo à frente do nariz.
A aura luminosa (ou sombria, depende do ponto de vista) fez com que ambos os lados olhassem para seus próprios umbigos, edulcorassem a pílula e afirmassem a de suas escolhas. Ambos veem um amanhã magnífico, belo e radioso caso consigam impor suas convicções, contudo, ganhando ou perdendo, a “Aura” já conseguiu seu objetivo alienante: todos se esqueceram da condição pútrida da fruta dentro da casca!
De sobra, o que se tem visto crescer como relva em campo orvalhado são as inimizades. No intuito de defender suas posições políticas, amigos já não são mais amigos e, de quebra, em suas justificativas, passam a considerar detalhes que um dia foram os ingredientes da boa amizade, qual seja, as diferenças.
Hoje, o reflexo das grandes forças ideológicas nocivas ao espírito afastam pessoas, de modo que a amizade vê-se submetida à convicção. Imaturas, pessoas digladiam-se por uma hipótese quase sempre – ou sempre – imperfeita e transitória. Arrisco dizer que em um futuro bem próximo lamentar-se-ão das amizades perdidas em razão de ideias já esquecidas. O obtusidade de hoje transforma a fantasia em verdade, semeando o medo no reino das águas claras, conspurcando-o de lama.
Entre amigos, não se tem mais a virtude da fidelidade! Deixamo-nos (e aqui me incluo!) manipular e nem nos demos conta. Agora é tarde! O final, arrisco do alto de meu ceticismo, será um ranger de dentes: a dor de sacrifícios indesejados e de perdas desnecessárias. No lugar das sinceras amizades, o trago amargo e ácido da verdade que todos teremos que engolir caso o Bem ou o Mal vençam. Não haverá remanso para se contar histórias e o Era uma vez tornar-se-á tão real e inócuo que não nos sobrará nada além de miseráveis tentativas - de sobreviver!


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