Depois
de haver desabrigado o bichano que dormia profundamente na grande almofada, o
garoto, que ali ainda mal se instalara, ouviu os gritos da mãe:
—
Quantas vezes eu já disse que é para estudar no quarto e não na sala? — Mas mãe...
A
mãe, dona Tonica, professora de literatura e mãe de Francisco desde sempre,
retrucou:
—
Não tem mais nem menos!
Salvo
pelo gongo, ou melhor, pela campainha, ele ali continuou, refestelando-se na
grossa almofada, preocupado com a folha e o lápis que, à sua frente, meio que
lhe indagavam pelo toque suave dos dedos. Esquecera completamente a bronca da
mãe. Era sempre assim. Quando algum de seus alunos chegava, ela se transformava:
sua meiguice e delicadeza atingiam nível igual ou superior à sua inteligência.
Conhecia tudo de literatura brasileira.
Aos
dez anos, o pequeno Paco – era assim chamado em homenagem ao avô espanhol – não
entendia muito bem porque era tão importante para a aluna de sua mãe, que
chegara há pouco, saber das intimidades de Bentinho e Capitu. Afinal, ia ser
médica. À menção de Capitu, lembrou-se de quando o pai dissera que a vizinha,
dona Lucrécia, era mulher dissimulada, Capitu na vida, ouviu até mesmo quando ele
suspirou um coitado do seu Ernesto, tão
jovem e corno!
—
Não diga isso na frente do menino, homem!, dissera a mãe.
Atento
às explicações de dona Tonica, aos poucos sentiu-se sonolento e passou a
visualizar a sua Capitu: loura como dona Lucrécia, seios grandes, olhos
azuis... Não via mais nada, deixou-se levar e murmurou: Capitu...
—
Ei! Acorda, moleque. Paco, Paco! Você não está me ouvindo? Venha cá, rápido! Vá
até a banca de revistas do seu Manoel e me traga uma revista sobre o Machado de
Assis. Ele sabe qual é; eu já havia reservado.
Num
sobressalto o menino ouviu a enxurrada de imperativos e em instantes já corria em
direção à banca do seu Manoel, que, numa liberdade não concedida, sempre lhe
beliscava as orelhas e exclamava: “Mas é a cara do avô, não há o que dizer!”
—
O que queres?
—
Vim buscar a revista do Machado que minha mãe reservou.
—
Não separei, meu jovem. Estou só, uma porção de coisas a fazer e, ainda por
cima, adoentado. Ah! que saudades de quando era assim como tu, um pirralho...
Bem, deixa pra lá! Vá lá, procure nos clássicos.
—
Mas minha mãe acabou de dizer que ele é moderno!
—
Ora, pois! Tão jovem e já acha que para ser clássico há que ser antigo. Mas
aposto que tua mãe não te disse é que hoje já estamos a ver clássicos modernos.
Pois lhe digo que, para mim, os clássicos são os mais procurados. Já ouvistes
de tua mãe que, para o momento, nosso maior clássico está para ser o senhor
Coelho?
—
Não, esse nunca!
—
Pois vá lá, se Machado é moderno estará entre os clássicos. Minutos depois,
Paco, mãos vazias, exclama: “Não achei nada, seu Manoel!”
—
Ah! Tu não sabes procurar! Não te disse que os clássicos são os mais
procurados? Pois então, a revista de Machado está na seção dos populares, que
para dar um ar de modernidade chamei de a seção dos pop stars. É fácil, vá lá! Vais encontrar o que mais se procura:
Madonna, a mulher Melancia e também o teu Machado.
Paco
contorna o estreito corredor e dá de cara com a mulher Melancia, pernas em V,
bumbum em riste, como a piscar para Machado que, sereno, plácido, olhos
perdidos sob o pince-nez, parecia
olhar para além da Melancia (para Paco ele estava a apreciar), a apreciar
Madonna que também de pernas ao ar e em contorcionismo radical provava a tese
do seu Manoel.
A
mãe, quando soube onde Paco encontrara os Cadernos
Literários que estampavam Machado na capa, não se conteve e exclamou: “Ah,
meu Deus! Ainda bem que ele já se foi”. A aluna, kardecista e pró-Capitu,
disparou: “Eu penso é na Carolina, dona Tonica, que a essa hora pode até ter
reencarnado!”
*
O texto acima, escrevi-o quando existiam mulheres Melancias e Madonnas a
provocar a libido masculina. Hoje, alguma poeira do tempo já sepultou as duas
no ostracismo e a libido, fragilizada, perdeu-se entre os gêneros, foi
criminalizada.
Caricatura de Machado de Assis: autor, Jefferson Nepomuceno
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