Revista Philomatica

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Machos, pero no mucho!


Em tempos em que se discutem exaustivamente ideologias de gênero e que a cabeça do homem jaz como alvo sob o salto alto a lhe provocar enxaquecas, vale a pena voltar um pouco no tempo e resgatar a “origem” das mudanças que o tornaram, digamos, mais sensível. Sim, porque nem todo homem é um brutamontes como querem uns e outros.
Comecemos pela Primeira Guerra Mundial, evento que tornou difusa as fronteiras da masculinidade e da feminilidade. Entre 1914 e 1918, podemos vislumbrar crises que, justapostas, contribuem para o sfumato de crenças e definições cujos contornos eram antes bem definidos. A primeira delas é a morte do soldado heroico. A cultura de combate que imperava no século XIX, por exemplo, era uma cultura em que se valorizava a guerra. A guerra era uma prova de virilidade, um rito de passagem para o homem, uma questão de honra, razão pela qual, ao longo deste século, pululavam os duelos. Enfim, o soldado do início do século XIX era um soldado que combatia de pé e empunhava a espada ou a baioneta do fuzil na vertical.
Contudo, durante a Primeira Guerra já surgem os armamentos modernos e este soldado tem que se prostrar, abaixar a cabeça para se desviar dos tiros das metralhadoras. Ele, o soldado, não se mantém mais na vertical, algo que se traduz como um golpe para a sua virilidade. Não estamos mais em frente de um soldado de Napoleão, para quem a guerra era uma aventura, a glória, mas de um homem entrincheirado em buracos em meio à lama, em situações catastróficas.
Outra crise que desponta é a incapacidade de ordem moral e afetiva, já que retomar a virilidade de antes tornara-se algo impossível, ao menos para parte dos soldados que retornaram da guerra, a maioria, incapacitada, com rostos e corpos desfigurados e que já não podiam mais reintegrar-se à sociedade, obrigando-se a viverem em grupos separados. O sofrimento e o não-lugar dos heróis de guerra possibilita um dos grandes momentos da psiquiatria que, nesta época, começa a discutir os traumas psíquicos.
O fenômeno demora a ser compreendido, vem a Segunda Grande Guerra e a figura do soldado não servirá mais de ideal masculino; outras figuras vão surgir, em parte artistas, ainda que, à época, parte a população ainda tenha como modelo os grandes chefes militares. É nessa época que os gêneros são, digamos, desiquilibrados. Diferentes formas de amor são forjadas entre os soldados: relações homoeróticas, em razão de uma virilidade posta à prova e ao descaso; relações maternais, em que oficiais exercem o papel de mãe para soldados em situações de desespero, padecendo de sofrimentos físicos e psicológicos - e por aí vai.
É claro, havia as relações consentidas e aquelas não consentidas. O mundo militar era (ou é) um universo de frustração sexual em que a violência sexual aflorava. Para fugir do fronte, houve casos de soldados que se travestiram de mulher. Paul Grappe, em 1915, chegou a ser condenado por deserção, mas escapou por uma década, período em que viveu com sua mulher, sob falsa identidade.
Nesse período também, o homem é substituído pela mulher no mercado de trabalho, algo que propicia a emancipação da daquela. Não se pode ignorar, contudo, que logo após a guerra o homem busca recuperar seus postos de trabalho. Esse movimento pós-guerra produz o aumento da violência doméstica e conjugal, assim como um número maior de divórcios, sobretudo porque o homem tem dificuldade de sair da cultura de violência cultuada no fronte.
Tudo isso, vale destacar, não desculpa qualquer violência, mas é fato que a guerra alterou as representações de feminilidade e masculinidade, a ordem dos gêneros. O aparecimento da garçonne (jovem que usava cabelos curtos como os rapazes) na França dos anos 20 é um dos indícios da transformação da relação entre os sexos. 
Hoje, tal é a fluidez dos gêneros que nada sobrou além de esperneios conservadores, ranzinzice de quem jamais viverá uma Belle Époque. Por isso, acostumem-se aos novos tempos de machos, pero no mucho!


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