Revista Philomatica

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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Emília não é a mais esperta!


Houve um tempo em que as crianças dançavam menos funk e liam mais livros.  Muitas dessas crianças começavam seu percurso de leitor com as obras de Monteiro Lobato nas mãos. O Sítio do Picapau Amarelo, lugar mágico e encantado, era onde todas as crianças queriam estar. Lobato, dentre tantas coisas, tinha como matéria-prima o sonho e ali no sítio, Emília, a boneca mais esperta de todas, Visconde de Sabugosa, Pedrinho, Narizinho, Zé Barnabé, Cuca, o Saci, Tia Anastácia, Dona Benta e outras personagens faziam a imaginação dos jovens leitores girar a mil. Nada era empecilho para a fantasia: quando se interpunha alguma dificuldade, estava lá o pó de pirlimpimpim (que os puristas do politicamente correto querem banir porque, uma vez recuperados, não suportam nada que os faça lembrar das carreirinhas da juventude).
Mas Emília deixou de ser a boneca mais esperta de todas, perdeu para Pedro Bandeira que, tão logo ouviu o tilintar do martelo a declarar a obra de Lobato domínio público, entreviu a oportunidade de ganhar uns caraminguás e engordar ainda mais a burra com a criatividade alheia.
Não vou tratar aqui do mau-caratismo revisionista, que apaga a memória em proveito de ideologias (até mesmo porque já falei disso antes nesta coluna), mas do oportunismo de Pedro Bandeira, mosqueteiro do bom-mocismo, que, ao suprimir algumas frases (e personagem) de Lobato, tascou seu nome na capa de Narizinho a menina mais querida do Brasil (título criado por Bandeira ao estropiar Casamento de Narizinho, Reinações de Narizinho, Narizinho arrebitado etc) e se apropriou da inventividade, inteligência e talento de Lobato sob a alegação de “limpar” a obra de lobatiana, constituindo-se em mais um caso em que o sub-reptício interesse pelo vil metal faz da luta por uma causa metonímia para o uso descarado do plágio. Trocando em miúdos, no quesito esperteza Bandeira passou a perna na Emília.
Ouvi dizer que Pedro Bandeira é fã assumido de Lobato. Não acredito! Se é fã, por que desossar, desfolhar, encurtar, suprimir, destruir a obra do autor? Para atender e se ajustar à bandeira da militância e com isso ganhar um dinheiro a mais? A questão do racismo pode e deve ser discutida e refletida a partir da obra e não suprimindo trechos! Isso é mau-caratismo! Há um blogueiro que, referindo-se às interferências de Bandeira, afirmou que este deu uma “arejada” na obra, driblando o racismo. Famelizar e desmontar a obra de Lobato, suprimir Pedrinho da narrativa sob a alegação de que se trata de uma personagem fraca e, de quebra, sustentar que “todas e cada uma das personagens lobatianas são apenas coadjuvantes e ou figurantes dessa maravilhosa e apaixonante menininha” [Narizinho], ora, convenhamos, escritor algum precisa de um fã como este, melhor são os inimigos que, lendo-o mal, lançam mão de práticas intolerantes e medievais para pleitear a queima de seus livros.
Antes que conclua: o que dizer depois de Bandeira afirmar que Narizinho é, ao lado de Capitu, a grande personagem da Literatura Brasileira? Sem querer fazer o que Bandeira fez com Pedrinho, penso que Narizinho seja uma importante personagem, mas não se compara a Capitu, de modo que o comentário, parece-me, senão um mau conhecimento da Literatura Brasileira, algum problema com a qualidade do pó de pirlimpimpim.
Por fim, finalizo com as palavra de Bradbury em seu posfácio “Coda”, a Fahreinheit 451, quando o autor comenta as ablações efetuadas em contos de Twain, Irving, Poe, Maupassant e Bierce: “cada minoria, seja ela batista, unitarista; irlandesa, italiana, octogenária, zen-budista; sionista, adventista-do-sétimo-dia; feminista, republicana; homossexual, do evangelho-quadrangular, acha que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar o querosene e acender o pavio. Cada editor estúpido que se considera fonte de toda a literatura insossa, como um mingau sem gosto, lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro ou escrever mais que uma rima de jardim de infância.”
Por isso, em tempos de bandeiras, menos Bandeira e mais Lobato!


Foto: Rede Globo, série infantil.



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

O revisionismo e Monteiro Lobato


Dentro do movimento marxista, utiliza-se o termo "revisionismo" para se referir a ideias, princípios, teorias ou correntes que mudam de modo significativo os fundamentos do marxismo, desafiando algumas de suas teses revolucionárias e/ou desviando-se da ortodoxia marxista-leninista. Em geral, é mais usado por aqueles que veem essas revisões como um ato de abandono ou traição do pensamento marxista. Portanto, o termo "revisionismo" é frequentemente usado de maneira pejorativa.
Pejorativo é o termo. Não por outra razão, tratando-se da Shoah o revisionismo confunde-se com o negacionismo do Holocausto. Intelectuais, historiadores e políticos que pregam o negacionismo, fazem-no de modo perverso, ainda que, ao negar, reafirmem o mal cometido ao longo do segundo Grande Conflito. Tamanha foi a barbárie que Adorno, em um ensaio de 1949 (Crítica à cultura e à sociedade), sentencia: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas.”
Se a poesia tornou-se uma impossibilidade, os cacos sobre os quais devemos escrever estão por aí como testemunho dessa barbárie e não resta senão à arte, em algum momento, ler e “falar” do que restou. Por isso, a memória e o esquecimento caminham lado a lado, um depende do outro, um só existe porque o outro existe e tal qual um palimpsesto, o esquecimento figura-se como superfície para que lembranças e reminiscências se reescrevam.
Dito isso, tomemos Lobato, que frequentou as manchetes durante a semana. Não tratemos do Holocausto, mas da escravidão e seus tentáculos racistas que perduram na sociedade. Pois bem, não é de hoje que tentam execrar Lobato. Em 2011, o CNE (Conselho Nacional de Educação), em um daqueles arroubos politicamente corretos, recomendou que não se distribuísse o livro Caçadas de Pedrinho (1933) por considerar que algumas de suas passagens eram racistas. À época, a histeria foi tamanha que a personagem da Tia Anastácia estava fadada ao esquecimento, seria apagada da obra. Até mesmo o pó de pirlimpimpim seria banido, pois a tropa do politicamente correto, tão parecida com as senhoras da Tradição, Família e Propriedade, afirmava que os alunos leitores poderiam associá-lo à cocaína. No baile funk pode!
Hoje, a tropa saiu novamente ao ataque, haja vista a obra de Lobato ter caído em domínio público, o que significa, status, para muitos “especialistas”, equivalente ao conceito de coisa pública que temos no país, qual seja, é público, é de todos, todo mundo faz o que quer, como quer, quando quer, de modo que já na segunda semana de janeiro, Pedro Bandeira, “exímio conhecedor da obra lobatiana”, decidiu “adaptar” Lobato. (Meu Deus! O que pensa agora Marisa Lajolo?).
Bandeira resolveu higienizar Lobato, limpá-lo com Veja Limpeza Pesada! Eis a explicação de Bandeira (Estadão, 19/1/2019): “Minha adaptação protege o talento de Lobato. Autores geniais como Perrault, Andersen, Dumas ou Shakespeare têm sido adaptados sem parar. No caso de Lobato, quase toda sua linguagem e humor devem ser preservados e foi o que fiz. Mas tenho de mexer um pouquinho em detalhes como os xingamentos da Emília. Na época de Lobato, isso poderia parecer engraçado; hoje, porém, é um absurdo. Sua obra não perderá a qualidade se tirarmos, aqui e ali, xingamentos acachapantes como ‘sua negra beiçuda’.”
Pergunto: Lobato precisa de alguém que o proteja? A meu ver, Bandeira repete a ignorância do CNE, arvorando-se detentor da correção e da verdade, arremedo de paladino das forças de ordem. Ao fazê-lo, Bandeira atropela a liberdade do leitor, manifesta desconfiança na capacidade de educadores, professores e leitores interpretarem o texto de forma correta e se posicionarem criticamente face à obra. Isso porque o leitor pode ser tudo, menos ingênuo; em geral, ao chegar ao texto, ele já vem imbuído de compreensões várias, alguma criticidade e experiências de vida, hoje resultado das discussões amplamente divulgadas pela impressa e por ONGs ao tratar das questões raciais. E as crianças? Ora, eis aí uma tarefa para educadores!
Por fim, nesses tempos em que o revisionismo bate à porta, logo será a vez de Machado de Assis. Como a escravidão não existiu, o Bruxo de Cosme Velho jamais escreveu o entrecho de Memórias póstumas de Brás Cubas, em que o menino Brás montou e fez de cavalo Prudêncio, o menino escravo (afora inúmeros outros exemplos em suas obras). A meu ver, racismo é exercício para a memória, discute-se às claras e não dilapidando obras, jogando-as no Lete. Aliás, estas deveriam ser usadas como material para refletir a questão.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Quem paga a música escolhe a dança?

Em sequência ao post sobre Lobato, transcrevo artigo da Professora Marisa Lajolo, uma das maiores especialistas em Monteiro Lobato, publicado no portal IG - Último Segundo/Educação, em 3/11/2011. Nele Marisa Lajolo explica do que trata Caçadas de Pedrinho e opina sobre o parecer do CNE.

Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso. Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente. Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida: felinos ferozes invadem o sítio e – de novo - é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças (particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça. Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de Dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos. Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida, quer proibir de integrar acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares. O CNE acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são expressões pelas quais Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes. Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis. Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu (D. Casmurro, Machado de Assis, 1900) traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho. Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar... ! É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito. Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação - manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta face ao que lêem. Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos. Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga o livro escolha a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e reescreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos. Trata-se de uma idéia pobre, precária e incorreta que além de considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura. Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade contra a nova mulher do papai, mas – ao contrário - pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva... Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis coincide com o lamento geral – de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação - pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira. Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir, a autoridade veta. E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções, estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores . . No caso deste veto a Caçadas de Pedrinho, a Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas ; (...) aponta menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos do livro analisado e exige da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura. Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.O que a nota exigida deve explicar? O que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa ? Qual seria o conteúdo da nota solicitada ? A nota deve fazer uma auto-crítica (autoral, editorial ?) , assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que Caçadas de Pedrinho é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC? As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro . Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado – independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir- será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve salve. E salve-se quem puder ... pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê!

*Professora Titular (aposentada) da UNICAMP; Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pequisadora Senior do CNPq.; Organizadora (com João Luís Ceccantini) do livro de Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil) , obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2010 como melhor livro de Não Ficção. Imagens: Marisa Lajolo e atores da versão do Sítio do Picapau Amarelo para televisão, Rede Globo. Todas disponíveis no Google Images.

quarta-feira, 16 de março de 2011

As Caçadas de Pedrinho e o Monteiro Lobato Minotauro

Não é de hoje que nesse recanto tupiniquim, abençoado por Deus e bonito por natureza, como diz a canção cantada às despregadas por gerações, polêmicas dão em nada. Aliás, como toda e qualquer polêmica, quando algo suscita discussões, divergências, controvérsias, espera-se que ao fim, no rastro de todo o falatório, haja ao menos um profundo debate de idéias. Qual nada! Aqui tudo vai pelo superficial, opta-se pela agressão gratuita, faz-se de vítima, procura-se logo a turma do barulho e, vislumbrado e garantido os interesses, a coisa esfria e tudo segue na mais santa e hipócrita paz.
Por que toda essa verborragia? Vá lá: parafraseando a conhecida rubrica: deu na Folha de São Paulo. O assunto veio à tona em tom ilustrado, com cara de diversão, meio escamoteado - como sempre, deixando para as entrelinhas as intenções de fato, no velho jeitinho brasileiro, sem ferir as suscetibilidades - ou sensibilidades - de uns e outros.
Mas há que se dar nomes aos bois: em 13 de março a Ilustrada publicou novo projeto da Rede Globo e da produtora Mixer para a atualização da obra infantil de Monteiro Lobato em novo formato. Segundo o jornal será um "game com sensor de movimento em que Pedrinho corre da Cuca, 15 aplicativos diferentes de Narizinho no iPad, videolog da Emília, Facebook da Dona Benta e um moderno desenho animado em HD".
Até aí, maravilha! Nesses tempos de imposição absoluta da imagem, não poderia aparecer ideia mais genial para que a novíssima geração, tão afeita às novas tecnologias e - reconheçamos, nem tão íntima das letras, pudesse conhecer as deliciosas histórias do Sítio do Picapau Amarelo.
Até aí também, maravilha!
Acontece que os baixinhos provavelmente sequer vão ouvir falar de Tia Anastácia e do genial pozinho de pirlimpimpim. Isso para agradar a tchurma dos excessivamente hipocritamente politicamente corretos e não despertar polêmica racial, sobretudo. O pó, como diz a reportagem também politicamente escrita, vai deixar de ser pó para que não haja qualquer ligação com qualquer substância alucinógina, trocando em miúdos, a cocaína. Nas escolas, ah!, isso pode! Basta acompanhar os noticiários: são frequentes as denúncias de sexo nos banheiros entre adolescentes, venda de maconha, crack e outras cositas mas no território aberto das escolas. Isso, publica-se hoje, amanhã a polícia passa pelo quarteirão da escola e depois de amanhã, problema resolvido, fica tudo o dito pelo não dito em razão da falta de memória coletiva e também porque, afinal, somos um povo pacífico, tolerante e respeitamos - sobretudo, a pessoa do outro e o sagrado direito universal de cada um.
Afora o tal pozinho, há a ablação de personagens e situações: Tio Anastácia, não pode mais. É preconceito racial. Certo, somos um país mestiço. Mas apagar parte da história é a melhor saída para não tocar na ferida e não afrontar parcela da população, diga-se, terrivelmente injustiçada? O próximo da lista certamente será o Jeca Tatu. Como nasci no interiorzão de São Paulo e, na infância, muitas vezes fui chamado de caipira, estou ansioso à espera da execração pública do Jeca. O fato é que o próprio Tiago Mello, um dos responsáveis pela produtora Mixer, reconhece que ao extirpar parte da obra do escritor estão fazendo dela um minotauro. Para tanto, disse: "As pessoas se esquecem da importância da Tia Anastácia. Ela é criadora dessa mitologia toda de Monteiro. Fez a Emília e o Visconde de Sabugosa". Mas, ainda assim o projeto continua. Afinal, o vil metal é preciso vir às burras e aí a ansiedade é muita, principalmente da Globo, que vislumbra uma mina de ouro à vista com o comércio de licenciamento de produtos, algo que sequer pó de pirlimpimpim proporciona. Desnecessário dizer, a família do ilustre escritor embarca nessa, claro; afinal, quem não gosta de uns muitos trocados a mais na conta bancária?
O fato é que nessa história toda não se discutiu a integridade da obra literária e artística de Monteiro Lobato. Talvez porque a Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE), em iniciativa capitaneada pela Professora Nilma Lino Gomes - segundo publicado na imprensa, ter gerado intenso debate, meses atrás, em duas frentes: uma, que entende que a obra deve ser lida em seu contexto, portanto, sem qualquer mutilação; outra, partidária de uma obra "maquiada" para atender ao pensamento contemporâneo.
Nessa discussão, desnessário dizer, a internet foi campo fértil para troca de farpas, muitas dissimuladas, politicamente corretas; outras, contundentes, sem medo algum de um preconceito às avessas. Embora não seja essa a minha intenção, sei que coloco o dedo na ferida. Li, por exemplo, no site Combate ao Racismo Ambiental as considerações da Sra. Katia Costa-Santos (http://racismoambiental.net.br/). Embora reconheça seu ponto de vista, achei-o um tanto exagerado, sentimental, cheio de palavras de ordem em sua réplica ao texto de Lya Luft - Crucificar Monteiro Lobato? Explico-me: a autora em diversos momentos reclama da mistura geral que é tudo aqui, argumentando que em outros paises brancos e negros vivem cada um no seu quadrado. Para isso relembra histórias pessoais e a todo instante usa termos tais como amiga branca, criança branca, criança não-branca.
Cada um sabe onde o calo dói, mas confesso que me surpreendi. Afinal, nunca em minha infância e agora, adulto, usei tais termos. Nunca tratei meu cunhado negro por preto da guiné, ou ainda, nunca referi-me a ele tratando-o por meu cunhado negro. Nunca falei de meus estimados e queridos amigos Valdete e Clélio, identificando-os por meus amigos negros. Não sou especialista no assunto, mas acredito que essa história dos quadrados só ajuda a despetar a animosidade entre pessoas que poderiam muitíssimo bem conviver irmamente.
A autora também critica intelectuais, pensadores, dramaturgos e "ficcionistas não-negros" brasileiros por calçarem botinas de sinhozinhos e sinhozinhas e pisotearem as sensibilidades dos negros brasileiros e, acrescenta: "a verdade é que nós negros brasileiros sempre fomos “coisas” prestadoras de serviços e ilustrações sem importância do cenário cultural brasileiro como um todo". Não vou - e nem posso - desmenti-la . Como disse, cada um sabe de seu calo. Mas, olhei para meu próprio umbigo e me perguntei: o quê há de errado? Sou branco e na história de minha família a coisa foi e é a mesma. Meus pais semi-analfabetos sempre trabalharam a terra - dos outros. Lembro-me de minha mãe contando que logo que se transferiu para a cidade foi ser empregada doméstica e frequentemente era obrigada almoçar às quatro da tarde, depois que o primogênito da patroa voltava da escola, quando então podia sentar-se à mesa e comer as sobras. Perguntei-me: será que não padeço da mesma esquizofrenia apontada pela Sra. Costa-Santos, já que penso que sou e não sou, penso que sou gente e sou "coisa", acho que faço parte da sociedade e, no frigir dos ovos, posso claramente constatar que também sou brutalmente hierarquizado, apesar de branco? Sinceramente, acredito que o buraco é mais embaixo e envolve respeito mútuo, educação e franca distribuição de renda.
No outro extremo, como disse, estão os intelectuais, pensadores, dramaturgos e ficcionistas não-negros, como apontou a Sra. Costa-Santos. Aqui, transcrevo trecho da reportagem Autores e leitores reagem contra parecer que veta Monteiro Lobato, publicada no portal IG - Último Segundo/Educação, em 03.11.2011:

"O CNE decidiu por unanimidade recomendar que não se distribua o livro Caçadas de Pedrinho, publicado em 1933, a instituições de ensino por considerar que algumas passagens são racistas. O órgão recomenda ainda que, caso alguma escola queira usá-lo, haja preparação do professor para tratar de racismo e uma nota na obra alertando sobre o conteúdo. Para entrar em vigor, o parecer precisaria ser homologado pelo ministro da Educação, Fernando Haddad, que já disse que não vetará a e pediu revisão da decisão.
A ocupante da cadeira número 1 da ABL, Ana Maria Machado, adiantou o que pensa: “Somos contra qualquer forma de veto ou censura à criação artística. Uma cultura não pode se tecer com as linhas dos melindres e ressentimentos. Isso a empobrece, em vez de enriquecê-la.”
Uma das maiores autoridades no assunto, a professora titular aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp), Marisa Lajolo, autora de vários livros sobre o autor, incluindo a organização de “Monteiro Lobato livro a livro” repudiou a decisão. Para ela, além de errar ao apontar racismo, a medida é “autoritária” e “amordaça” a literatura de forma geral. “O episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.”
Para ela, qualquer nota seria um “desastre”. “O que a nota exigida deve explicar? O que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa? Qual seria o conteúdo da nota solicitada? A nota deve fazer uma auto-crítica (autoral, editorial?) , assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que Caçadas de Pedrinho é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?”


De todo esse imbróglio, não foi a constatação de que ainda não nos vemos como iguais e de que há muito ressentimento adormecido o que mais me assustou. Foi meu querido Machado. O que farão dele? Afinal, logo o negro Vicente, "nobre espírito de dedicação" no "corpo vil do escravo", pajem de Helena, será banido das páginas de Helena. Não será diferente o fim de Estevão Soares, outro negro bom como Vicente, do conto A Mulher de Preto, "mais irmão do que escravo, na dedicação e no afeto". Condenadas também estão páginas de Memórias póstumas de Brás Cubas, sobretudo o episódio que o memorialista presenciou no Valongo: o liberto Prudêncio vergalhando um irmão de raça, comprado e castigado pelo próprio ex-escravo, que se "desfazia" das pancadas de outrora, além, é claro, de todo o capítulo XI, que narra as estripulias de Brás Cubas menino, quando deitava cinzas ao tacho, para depois ir dizer à mãe que a escrava estragara o doce "por pirraça", ou ainda quando cavalgava Prudêncio, o moleque da casa, que recebia varadas, um cordel nos queixos, à guisa de freio e, assim que soltava um "ai, nhonhô", não ganhava retribuição outra que um "Cala a boca, besta!".
Que censurem Machado! E logo! Afinal, para os burocratas da educação, você leitor não é nada. É preciso que lhe digam como se lê, porque se lê, como se o texto não fosse feito de linhas e entrelinhas, enfim, passível de interpretações díspares, a gosto do freguês.


Imagens: Jacyra Sampaio (à dir.) interpretou Tia Nastácia entre 1977 e 1985, em uma das versões do Sítio do Pica-pau Amarelo para a Globo; ao lado dela está a atriz Zilka Salaberry, que vivia Dona Benta; Monteiro Lobato, por volta de 1920 e capa do livro Caçadas de Pedrinho. Todas disponíveis no Google Images.