Revista Philomatica

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Voltaire, filósofo - e vegetariano avant la lattre


Remissões a Voltaire, em uma imprensa povoada por celebridades vazias de espírito, parecem arcaísmo. De sua obra poética, pode-se afirmar que bem pouca coisa ainda é legível; de sua produção como historiador e cientista não se pode dizer algo muito diferente, haja vista seus escritos terem se tornado datados em razão das vicissitudes que movem as sociedades; sobram, portanto, o polemista, o filósofo e o prosador, enfim, o escritor, cuja verve irônica não só marcou o século XVIII, mas ainda perdura, sendo revisitada a cada vez que a intolerância abre as asas sobre nós. Mas Voltaire é mais, ou melhor, foi mais que isso: Voltaire nutria o mesmo respeito que Da Vinci e Schopenhauer - por exemplo, pelos animais, refletindo sobre suas percepções e sentimentos e praticando o vegetarianismo.
Voltaire recusava-se a ver os seres humanos como superiores, por sua essência, em relação a outras espécies animais; isto corresponde à sua rejeição pelas religiões abraâmicas (de Abrahão - Judaísmo, Islamismo e Cristianismo, nas quais o animal é frequentemente considerado inferior ao homem) e a doutrina dos “animais-máquinas” presente no Discurso do método, de René Descartes - que ele odiava, e considerava ser uma “vã desculpa  da barbárie”, que permitia ao homem desnudar-se de qualquer sentimento de compaixão pelo sofrimento dos animais.
Voltaire começou a se interessar pelo vegetarianismo e, em sua defesa, por volta dos anos de 1761-1762, como mostrou Renan Larue[1]; diversas leituras ligam o filósofo a uma afirmação pitagoriciana (o termo vegetarianismo não existia à época): o testamento de Jean Meslier, o Émile, de Jean-Jacques Rousseau, o Tratado de Porfírio, sobre a abstinência da carne de animais, bem como numerosas obras sobre o hinduísmo (obras bramânicas que estavam começando a ser traduzidas para o francês e estudadas nos círculos intelectuais europeus).
Em suas cartas, Voltaire declara que “não come mais carne” e “nem peixe”, definindo-se ainda mais pitagoriciano que Philippe de Sainte-Aldegonde, um vegetariano que recebera em Ferney, perto de Genebra.
Para Voltaire, o vegetarianismo nunca foi justificado sob uma lógica ligada à saúde, mas sempre por razões éticas: o vegetarianismo é uma “doutrina humana” e uma “lei admirável pela qual é proibido comer os animais nossos semelhantes”. Tomando como exemplo Isaac Newton, para quem a compaixão pelos animais se revelava uma base sólida para a “verdadeira caridade” em relação aos homens, Voltaire afirmava que não merece ser chamado de filósofo quem não se tem essa “humanidade, virtude que inclui todas as virtudes”.
No Diálogo do galo e do frango, Voltaire faz com que os animais digam que os homens que os comem são “monstros”, “monstros” humanos que também se matam cruelmente: o galo elogia a Índia, onde “os homens têm uma lei sagrada que por milhares de séculos os proibiu de nos comer”, bem como os antigos filósofos europeus:

Os maiores filósofos da antiguidade nunca nos colocaram no espeto. Eles tentaram aprender nossa língua e descobrir nossas propriedades tão superiores às da espécie humana. Nós estávamos seguros como na idade do ouro. Os sábios não matam animais, diz Porfírio; somente bárbaros e padres os matam e os comem.

Em A Princesa da Babilônia, um pássaro afirma que os animais têm “uma alma”, assim como os homens. No Tratado sobre a tolerância (nota do capítulo XII), Voltaire lembra que o consumo de carne animal e o tratamento dos animais como objetos estritos não são práticas universais e que “há uma contradição manifesta em acreditar que Deus deu aos animais todos os órgãos do sentimento, e sustentar que ele não lhes deu nenhum sentimento. Parece-me ainda que nunca se deve ter observado os animais de modo a não distinguir entre eles as diferentes vozes da necessidade, do sofrimento, da alegria, do medo, do amor, da raiva e de todas as afeições”.
Voltaire vai mais longe quando se trata do respeito aos animais, mas o espaço e o tempo são curtos, leitor, por isso, à moda do folhetim, continuo semana que vem com as considerações do filósofo sobre “A Carne”, presentes em seu Dicionário filosófico.


Imagem: Pitágoras defendendo o vegetarianismo, de Pierre Paul Rubens.


[1] LARUE, Renan Larue. Pensées végétariennes, Voltaire, Éditions Mille et une nuits, n°632, 2014; « Le Végétarisme dans l'œuvre de Voltaire (1762-1778). Dix-Huitième siècle (2010) n°42, pp. 19-34.

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