Revista Philomatica

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Escrever e morrer


Em 1967, Roland Barthes escreve A Morte do Autor, texto seminal para os estudos literários. Nele, ao comentar a novela Sarrasine, de Balzac, o crítico afirma que a escrita é um neutro, um compósito, um oblíquo para onde foge o sujeito, o preto-e-branco onde perde-se toda a identidade, começando precisamente pelo corpo que a escreve.
Ora, fato contado, produz-se um descompasso e a voz perde sua origem, morre o autor e a escrita começa. Em proveito da escrita, restitui-se então o lugar ao leitor, esse escriptor que reescreverá livros e livros à sua maneira, preenchendo as entrelinhas.
É claro que há críticos - Bloom, por exemplo – que acham isso tudo uma tolice. A despeito da teoria, o império do Autor, essa personagem moderna, segundo Barthes, ainda é muito poderoso. Não importa aqui se as sociedades modernas o tenham produzido em proveito de interesses outros, o que importa é que o Autor acreditou desde sempre que o produto de sua criatividade, ainda que espalhado pelos quatro cantos, é coisa sua, só sua. Surrupiar vira plágio, alterar, só com seu consentimento, e, ainda assim, às vezes, as relações azedam entre autores e os artistas que resolvem balançar o berço da criança cuja paternidade não fora sua.
Tomemos alguns exemplos: conta-me S. L., que fora amiga de Hilda Hilst, que, juntas, em uma noite fria resolveram ir ao teatro Centro de Convivência, em Campinas, assistir a montagem de A Morte do Patriarca. Casa lotada, atores e diretor exultantes, afinal, Hilda estava na plateia. Mal esperavam o final do espetáculo para ouvirem a opinião da escritora e quem sabe dividir algum dedo de prosa em algum dos bares do Cambuí. Ocorre que nem mesmo haviam transcorridos vinte minutos do início do o espetáculo, Hilda toma S.L. pelo braço e, decidida, diz: “Vamos, agora.” Hilda saiu do teatro e a plateia que sabia de sua presença ali voltou as costas para o palco. Atores e diretores... prefiro não comentar. O que soube por S.L. é que ela, Hilda, odiara tudo. “Não foi isso o que escrevi”, concluiu. Porém, Hilda sobreviveu.
Marguerite Duras, por sua vez, antes mesmo de se tornar cineasta tivera algumas de suas obras adaptadas: René Clément realizou Un barrage contre le Pacifique, que Duras considerou “a mais inacreditável traição”; o mesmo ocorreria com Moderato Cantabile, adaptado por Peter Brook, que a autora, descontente, disse ter querido fazer sua própria versão. Já com O Amante (1984), adaptado por Jean-Jacques Annaud em 1991, e cuja estreia deu-se em 1992, Duras não gostou nem um pouco, afirmando que a adaptação ideal do romance seria sua leitura feita por ela mesma. Duras, assim como Hilda, também sobreviveu.
Boris Vian, prolífero autor francês que escreveu nada mais nada menos que 10 romances, uns 60 contos, 3 coletâneas de poesia, 3 volumes de crítica e crônicas de jazz, 10 peças de teatro, 6 libretos de ópera, 30 roteiros, cartas, panfletos, manifestos e traduções, também teve lá seus problemas com os adaptadores. Em 1946, Vian havia escrito J’irai cracher sur vos tombes, cujos direitos de adaptação haviam disso comprados pela sociedade SIPRO.
O próprio Vian se encarregara de adaptar seu romance para o cinema; ao entregar sua adaptação aos produtores recebeu um “não compreendemos bem o que o você quis dizer [...] fomos obrigados a contatar um novo adaptador para este trabalho”.
Na manhã de 23 de junho de 1959, J’irai cracher sur vos tombes, filme inspirado em seu romance é projetado no cinema Le Marbeuf, perto da Champs-Élysées. Vian, que já havia discutido com os produtores, dissera estar convencido de que a adaptação não era seu estilo e que expressaria publicamente seu desagrado e, por fim, que não queria seu nome associado ao filme. Apesar de suas hesitações, Boris fora convencido por amigos a ir à projeção. Logo nos créditos do início, quando apareceram as palavras “inspirado no romance de Vernon Sullivan (pseudônimo de Vian), traduzido do americano por Boris Vian”, este se levanta e grita “Ah, não...”.
Diferente de Hilst e Duras, Vian não suporta o ultraje e morre de uma fibrilação ventricular, aos 39 anos, antes mesmo de chegar ao hospital Laennec. 

Foto: Cena de J’irai cracher sur vos tombes, filme de Michel Gast, 1959.
Publicado originalmente em https://z1portal.com.br/escrever-e-morrer/

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