
Frederico o Grande, que foi
alguém na história da humanidade e que manejava a pena e a espada com igual
destreza, enviava em 1725 a Voltaire, o amigo íntimo com quem durante anos trocou
uma correspondência que ficou célebre pelo saber profundo, pela agudeza do
espírito e pela sutileza filosófica, uma carta em que se destacam essas
palavras: “Felicito-vos pela excelente opinião que formais dos homens. Para
mim, que em virtude da minha situação, conheço bastante esta espécie de dois
pés e sem penas, afirmo que nem vós nem todos os filósofos do mundo corrigirão
o gênero humano da superstição... Creio, no entanto, que a voz da razão, à
força de se insurgir contra o fanatismo, poderá tornar a raça futura mais
tolerante do que a do nosso tempo: e já isso será lucrar muito.”
O rei Frederico teve a
admirável intuição de algumas verdades, que depois de sua morte floriram e se
verificaram. Nos juízos que acabo de reproduzir, porém, ou falhou ou os
formulou com muitos séculos de antecipação, antes que eles possam ser
reconhecido como exatos. Com efeito, cento e quarenta e seis anos volvidos
sobre a sua epístola a Voltaire, é fácil observar que a rez pensante do nosso
tempo é tão intolerante ainda como o foi nos dias em que Frederico o Grande
reinava. Reside nela o mesmo orgulho, a mesma vaidade, a mesma ânsia do
domínio, a mesma vontade do triunfo sobre o seu semelhante: - e ativamente
pretende impor a sua opinião à opinião dos outros e fazer prevalecer as suas
ideias sobre as ideias alheias.
O articulista escreveu tais palavras
em 1911, referindo-se a um contexto de 1725. E hoje, o que temos? Algum avanço
na esfera das ideias? Avanços no respeito à diversidade e à opinião contrária?
Parece-me que não! Quando um país inteiro pensa de um só modo, isto é algo
bastante perigoso. Obrigar cidadãos a pensarem do mesmo modo, na historiografia
moderna, tem um nome: ditadura, fascismo, nazismo etc. Etc porque nesses nossos
dias em que a modernidade é líquida e a razão já não oferece qualquer garantia de compreensão do mundo, uma
vez que, muitas vezes, comprometida com os jogos do poder, insurge-se como
agente de repressão, o que dizer do episódio envolvendo a jornalista Miriam
Leitão?
Miriam Leitão, ainda que tenha
militado no PCdoB, penso, não come ou comeu criancinhas. Gostem ou não os
apoiadores do presidente, os quais, destacaram-se publicamente no cenário
nacional por clamarem por democracia, Miriam Leitão tem direito à sua opinião.
No caso, é claro, ela não é apoiadora do atual presidente, assim como não era
dos anteriores, um dos quais mencionava o nome da jornalista nos palanques,
aventando a sua desaprovação à política econômica que praticava. Miriam foi
achincalhada em um voo pelos asseclas do tal presidente, que a chamavam de
direitista e neoliberal. Quem viu o vídeo constatou tratar-se de uma situação
aterradora, beirando a fronteira da agressão física. Não por outra razão, a
Profa. Maria Sylvia afirmava que a “ideologia emburrece”.
Na bola da vez, com a alternância das
forças políticas, Miriam Leitão novamente sofre ataques, mas agora não foi insultada
pela massa cuja ideologia aliena, mas pelo próprio presidente. E tudo isso por
quê? Segundo nosso articulista, por causa da “vaidade, [d]a mesma ânsia do
domínio, [d]a mesma vontade do triunfo sobre o seu semelhante”. Por isso, e só
por isso, Miriam Leitão pode – e deve – ser aviltada, afinal, ainda que as
forças e os jogos de poder tenham se alternado, a máxima continua a mesma: “a
ideologia emburrece”, o que faz com que as pessoas não enxerguem muito além dos
umbrais de suas portas, protegidas em sua zona de conforto. Talvez por isso, os
comentários animosos e violentos direcionados à jornalista por apoiadores do
presidente.
Voltaire, o interlocutor de
Frederico o Grande e paladino da tolerância, perguntava: “O que é a tolerância?
É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros;
perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da
natureza.”
Dito isto, parece-me que sua
eminência, o presidente, esqueceu-se inclusive do aforismo que encoraja os
crédulos a jogar a primeira pedra caso jamais tenham pecado. Trocando em
miúdos, sejamos mais humildes, respeitemo-nos, afinal, homens demais já decepcionaram
Voltaire e fizeram com que Frederico o Grande incorresse em erro.
Imagem: Tolérance, por Boussoussa.
Publicado anteriormente em https://www.z1portal.com.br/miriam-leitao-e-a-intolerancia/