
Nos
anos de 1960, quando o Mossad, em uma operação espetacular, raptou Adolf
Eichmann, criminoso nazista e um dos principais idealizadores do Holocausto, na
Argentina, país também comandado por nazistas, a filósofa Hannah Arendt, a serviço
do jornal The New Yorker, acompanhou
o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Findo o julgamento, Arendt escreve Eichmann em Jerusalém, obra em que aprofunda
o conceito de “banalidade do mal” por ela criado, ao defender que o resultado
da massificação das sociedades criou uma multidão incapaz de qualquer juízo
crítico, qual seja, inábil para julgamentos morais, aceitando ordens sem ao
menos questioná-las.
Eichmann,
membro da elite nazista e um dos idealizadores da solução final, portanto,
visto como monstro em potencial, no julgamento revelou-se apenas um funcionário
zeloso que fora incapaz de descumprir as ordens que recebera. Com isso, o mal
torna-se algo banal. Bastante criticada, sobretudo porque o livro traz exemplos
de judeus e instituições judaicas que, submetidas aos nazistas, cumpriram suas
diretivas sem questionamentos, Arendt reflete principalmente sobre a violência
impetrada por governos totalitários, cujo domínio revela-se mais opressor que a
escravidão. Nas tiranias, sob a batuta das ideologias que as sustentam, seres
humanos são capazes de realizar ações impensáveis, como a destruição e a morte,
sem, contudo, serem motivados por qualquer malignidade.
Ao
se deparar com o depoimento de Eichmann, que relatava suas atividades como
carrasco nazista sem qualquer hesitação ou perplexidade, usando clichês e
palavras de ordem, justificando seu comportamento sob a moral da obrigação que
a função lhe exigia, e mais, argumentando que em nenhum momento poderia ser
tomado por um criminoso, pois apenas cumpria o seu dever, além de ser um bom
pai de família e não possuir nenhum ódio ao povo judeu – mas que, no entanto,
viabilizou a morte de milhões de pessoas –, Arendt pergunta: “o que faz um ser
humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo
nada demais?”
Deixo
a questão filosófica por aqui, porém, transfiro a reflexão para a causa animal. Se em nossas sociedades massificadas, em que a humanidade torna-se algo raro e
o que mais importa são as organizações econômicas e o lucro que elas geram,
enfim, universo em que ninguém se importa se nos sentimos abandonados,
solitários, submissos e alienados, imaginem o que não acontece com vidas que
transitam embaixo dos nossos narizes e não têm voz, voz para gritar quando o
desespero, o perigo, a fome e a morte batem à porta?
As
pessoas, robotizadas, não veem cachorros, gatos e outros animais perambulando
esquálidos pelas ruas. Essa falta de sensibilidade, penso, revela um pouco do
mal que paira sobre e em nossos espíritos, mas, não bastasse isso, alguns se
comprazem em torturá-los, agredi-los, matá-los. Às vezes, o que o animal
procura e quer é apenas um pouco d’água, algo para comer. E o que recebe?
Pauladas, chutes, água fervente. Se estiverem pensando que estas ações são
praticadas por pessoas moralmente descompensadas, enganam-se! São senhoras e
senhores, pais e mães, avôs e avós, muitos dos quais, aos domingos, vão à missa
ou ao culto e lá imploram pela bondade divina, esquecendo-se do mal que
cometeram.
O
leitor deve estar pensando porque falo disso agora, não é mesmo? Só porque depois
de um tempo sem acessar as redes sociais, especialmente o facebook, onde participo de alguns grupos de proteção animal,
surpreendi-me, mais uma vez, com a quantidade de denúncias e pedidos de ajuda para animais vítimas de maus-tratos. Muitas vezes, a ajuda resume-se a uma
assinatura, na espera de que o caso venha a ser visto pelas autoridades e os
criminosos punidos, pois o animal já está morto. Mas a condenação, acreditem,
nos tempos em que vivemos, receio seja algo raro.
Lamentavelmente
o dito de Schopenhauer continua atualíssimo: “O homem fez da terra o inferno
dos animais.” Eis a banalidade do mal, eterna como o céu, profunda como o
inferno.
Publicado anteriormente em https://www.z1portal.com.br/a-banalidade-do-mal-e-a-causa-animal/