A literatura, como qualquer campo do conhecimento, nos oferece inúmeras formas de abordagem. O texto em si, este, pode ser visto de maneira ingênua, a partir de uma leitura singela, como também pode ser explorado pelo lado sensual, sim, tal qual um objeto de prazer, pleno de erotismo e que provoca gozo. Roland Barthes em Le Plaisir du Texte (1973), argumenta sobre o lado sensual do texto, tanto por parte de quem escreve, que se expõe, sem qualquer medo de mostrar seus desejos, sob pena de ser alvo fácil - da crítica e de tantos outros, tanto por parte do leitor, que normalmente é visto como um ser passivo, indefeso frente ao texto, mas que em Barthes é mostrado em instante de plenitude criativa, ou seja, em momento de gozo e êxtase. Há quem diga que um bom texto é melhor que uma boa trpd (rsrsrs). O fato é que Barthes em Le Plaisir du Texte, ao desconsiderar a frigidez do texto político e barroco (empolado) e evocar argumentos de Flaubert, Stendhal, Bataille, Sade, Proust etc, traz, de maneira lúdica, um tema fundamental da semiologia e da literatura, ou seja, o gozo profundo (e literário). O prazer é extensivo ao encontro de literaturas e, nelas, o encontro pode ser estudado pela intertextualidade.
A intertextualidade são as relações possíveis entre vários textos, seja no âmbito de compreensão, da história ou mesmo do plágio. A intertextualidade é um eco de memória, é a lembrança nostálgica que leva a literatura a sua própria retomada e com isso se articula, na transposição, com um novo sistema significante, o que resulta em sistema operatório que denuncia a co-presença entre dois ou mais textos. De maneira clara e na sua representação mais simples, a intertextualidade se define como a ideia de que tudo se apóia, seja na escrita ou na arte, conscientemente ou não, no simples fato de que nenhum texto pode ser escrito de forma independente, uma vez que já foram registradas em nossa memória mensagens de (e) textos anteriores emitidos por outros autores, o que equivale a dizer que, quando rascunhamos algumas linhas, as palavras nelas grafadas já estão inelutavelmente impregnadas pelo pensamento de um texto qualquer que nos precedeu e que, inconscientemente - ou não, em algum momento do passado alimentou nosso conhecimento.
O mecanismo da intertextualidade, metaforicamente definido por diálogo, trama, tecido, biblioteca etc, ao mesmo tempo em que concorre para a tessitura de um novo texto, marcando assim, a construção de sua própria originalidade, se inscreve na genealogia de entrelaçamentos e filiações que ao longo da história permitiu a literatura nutrir-se de si mesma, de sua história. Bakhtin, grande teórico da literatura e autor de Problemas da Poética de Dostoiévski, que desvenda a multiplicidade de vozes e consciências independentes que constituem a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski, afirma: "Notre pensée ne rencontre que des mots déjà occupés, et tout mot, de son propre contexte, provient d’un autre énoncé déjà marqué par l’interprétation d’autrui." *
Em literatura a intertextualidade se mostra na trama por meio de referências, citações, alusões, pastiche, paródias e mesmo o plágio, como dito acima, mas, e nas artes? A relação entre a literatura e as artes já há muito se consolidou: quem não se lembra de Le Ventre de Paris, de Émile Zola, quando Florent chega ao grande Halles ao amanhecer e o vê sair das sombras, apreciando os legumes emergirem das calçadas ao raiar do sol, inundando as ruas próximas ao mercado com uma explosão de cores e tons, sob o efeito da luz, numa demonstração fascinante do impressionismo nas páginas de um livro? Pois o mesmo se dá com as artes plásticas, onde às imagens que mantêm diálogo entre si, dá-se o nome de citacionismo - nada mais que um outro conceito para a intertextualidade de imagens. A prática vem do século XV e as imagens, transpostas para outros contextos, são reformuladas, trapaceadas, de forma forma a criar uma segunda série de imagens, ainda que com significados diversos daqueles da origem, aumentando, assim, o estoque iconográfico. Muitos chamam a isto de releitura: Picasso fez a releitura das Meninas, de Velásquez; Francis Bacon, séculos depois (1953), releu o Retrato do Papa Inocêncio X, de 1650, também de Diego Velásquez.
Mas e a técnica, é possível uma intertextualidade no fazer das artes? Possível ou não (e, como não entendedor do assunto, apenas especulo, portanto desconheço que nome a isto se dá), o certo é que ao visitar a Exposição Andy Warhol Mr. America, em cartaz na Estação Pinacoteca, em São Paulo, acreditei piamente na possibilidade. Ao dar de cara com a Jackie Onassis, em tons dégradés, num registro de alteração de luz e sombra, que torna umas imagens sutilmente mais claras que outras, de pronto, lembrei-me da série Le Jardin Japonais, do pintor impressionista Claude Monet. Monet tornou-se célebre por retratar a natureza e experimentar os diferentes efeitos da luz, muitas vezes reproduzindo o mesmo lugar em diferentes momentos do dia ou épocas do ano. O último dos pintores impressionistas de renome, destacou em suas pinturas os reflexos da água com as luzes e as sombras dos objetos ao redor, num jogo, de fato, impressionante. A técnica, óbvio, não é a mesma de Warhol, mas os dégradés estão lá e, claro, os achei intertextuais. O mais é com você leitor!
* A citação extrai de André Laugier, que cita Bakhtin, porém, não menciona o livro, só a editora (éditions du Seuil, 1965, page 50).
Imagens: Jackie, de Wandy Warhol e Le Jardin Japonais, de Claude Monet (algumas das pinturas).
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