Revista Philomatica

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Clarice, simplesmente Clarice

É preciso inventar desculpas para se viver. Para escrever não é diferente. Desculpas sempre são férteis e a última delas de que lancei mão foi certamente o espetáculo Simplesmente eu. Clarice Lispector, que há muito não é mais novidade para os amantes e frequentadores de teatro, afinal, já rodou muitas capitais, recebeu ótimas críticas e rendeu o prêmio de melhor atriz para Beth Goulart, diga-se, merecidíssimo. Segundo li na imprensa, que a intimidade de Beth com Clarice é de longa data: "Vivi uma busca existencial na adolescência e Clarice foi uma grande referência para mim.", diz a atriz que também é a diretora de Simplesmente eu. Clarice Lispector e responsável pela adaptação de seus textos para o teatro. O espetáculo traz a trajetória de Clarice, uma mulher buscando entender o amor, seu universo, suas dúvidas e contradições. Não faço aqui crítica teatral, mas são raras as vezes em que a transposição de um material literário para o teatro ou cinema saem a contento e, quando isso acontecesse é preciso aplaudir. Em cena, pode-se ver a autora e seus personagens dialogando sobre o ato de escrever - a inspiração e a criação, a vida e a morte, a solidão, o silêncio e a palavra, Deus, o cotidiano, a entrega, a aceitação e o entendimento. O texto é extraído de depoimentos, entrevistas, correspondências de Clarice e trechos de obras. "Escolhi personagens que, de certa maneira, têm relação com algumas fases da vida da Clarice", diz Beth, [...] "A Joana (de, Perto do Coração Selvagem) representa o impulso criativo, até um pouco adolescente. A Ana (do conto Amor), dona-de-casa dedicada aos filhos e ao marido, lembra o momento família dela, casada com o diplomata Maury Gurgel Valente e mãe de Pedro e Paulo. A Lóri (de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres) incorpora a importância do amor, do encontro amoroso. E a mulher anônima (da crônica Perdoando Deus) ecoa um pouco o lado racional e bem humorado da Clarice, sua sagacidade".
Enfim, o que norteou a atriz foi querer traçar um paralelo entre elas e a trajetória de vida da autora, cuja literatura era ligada a seus questionamentos. O lado cômico do espetáculo fica por conta da história da mulher que se depara com um rato morto na Avenida Copacabana. "As pessoas não associam o humor à obra de Clarice, mas ela tinha um humor meio de rir de si mesma.", afirma Beth, que interpreta a autora em cena de maneira natural, ao passo que suas personagens são interpretadas de modo mais expressionista.
Eis uma ótima desculpa para falar de Clarice, uma das nossas maiores escritoras, senão, a mais singular - segundo alguns de seus críticos, uma espécie de Simone Weil, que teria sido tentada pela ficção. Clarice Lispector nasceu em Tcheltchelnik, na Ucrânia, de uma família judia. A data de seu nascimento é algo controverso. Em alguns lugares aparece 1917, em outros 1920 ou ainda 1925 (às vezes, as datas estão seguidas de um ponto de interrogação). A data de sua chegada pouco importa, o fato é que era bela e teatral: possuía um desses rostos iluminados, olhar penetrante e oblíquo que denunciava uma certa malícia sob o arco de suas sobrancelhas bem definidas - um olhar imponente, porém frágil, doce. Quanto à sua obra, já li que aqueles que se debruçaram sobre seus primeiros livros, talvez tenham acreditado ter encontrado neles uma literatura de certo epigonismo, isto é, uma filiação, dependência, ou imitação de outro autor mais importante, em especial de geração anterior; já que neles se podia entrever lembranças de Kafka e, sobretudo, de um existencialismo de vertente meio romântica, que simbolizou, deste lado do Atlântico, La Nausée, de Sartre, e L'Étranger, de Camus.
O fato é que essas afirmações, embora não sejam totalmente falsas, são insuficientes. O pensamento místico que eleva a inspiração ao seu auge, mas que, não raro, aniquila a possibilidade de se exprimir por palavras, alimenta o essencial da obra da romancista. O pensamento errante dos místicos, e a inconstância do pensamento é, em Clarice, a recusa de se fechar em um sistema, pelo simples fato de que todo sistema contém as sementes de respostas previsíveis, com isso suas ideias se desenvolvem às margens da sombra do conhecimento, onde a imaginação não é mais que uma intrusa, onde, de fato, ela participa da discussão.
Mas o que disse Clarice Lispector, a partir de seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem? Ela diz que seu corpo é a sombra de sua alma: que Deus nunca deve ser pensado, porque, caso o seja, ele foge; que ele, Deus, deve ser ignorado; que a nostalgia que sentimos não é aquela do Deus que nos falta, mas a nostalgia de nós mesmos que não somos suficientes, porque sentimos falta de nossa grandeza impossível e, diz mais, que aquele que não sabe o que é Deus, jamais poderá conhecê-lo. Diz algo como Deus é o passado ou qualquer coisa que a gente já sabe. Porém se questiona, volta-se a Ele: "Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar pala­vras e as palavras são mentirosas e eu continuo a so­frer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes den­tro de mim? por que me fizeste separada de ti?"
Às vezes, a exemplo dos místicos para quem o amor supremo de Deus é o amor morto, o amor que não deseja, que não procura, que não concebe mais nada, ela argumenta que a oração mais profunda não é aquela que implora, mas a que nada mais pede. E, muitas vezes, como um astuto teólogo treinado para evitar as armadilhas, a leitora de Espinosa e São Tomás de Aquino diz que Deus é o que existe, e todas as contradições estão em Deus e não se contradizem. Anos depois, em Água Viva, dirá; "E Deus é uma criação monstruosa. Eu tenho medo de Deus porque ele é total demais para o meu tamanho".
O pensamento do teólogo, que aspira a ir além da compreensão e se misturar ao conhecimento do Ser Supremo se encontra na origem do problema que a linguagem literária coloca permanentemente em Clarice Lispector, um problema que se torna tema recorrente e parte constitutiva de sua obra. Para melhor compreender a natureza da sua inspiração melhor seria, talvez, aventurar-se pelo pensamento do hermétivo filósofo Wittgenstein que, como a autora, afrontou as fronteiras da linguagem.
Em A Hora da Estrela, seu último livro publicado em vida, responde: "Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo".
Em Água Viva, mostra seu embate frente às palavras: "Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. È-se. Sou-me. Tu te és." - Logo, porém, reage contra si mesma e se pergunta: "Não usar palavras é perder a identidade? é perder-se nas essenciais trevas daninhas? Perco a identidade do mundo em mim e existo sem garantias". Mas essa sua reconciliação com a linguagem não dura muito tempo e logo depois diz: "Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical".
Essa desconfiança que Clarice sente a respeito do poder da linguagem, sob muito aspectos, é mesmo combatida em suas obras, onde a exata percepção da realidade é resultante do uso que faz das palavras, as quais deixam a impressão de que criam corpo, continuam e se desenvolvem por sua própria conta a ideia e a visão inicial da autora.
Enfim, Clarice é de fato uma escritora singular. Em O Lustre, sua segunda obra, mostra-se um tanto romanesca, mas, em A Paixão Segundo G.H., algo extraordinário aconteceu em sua escrita que a fez galgar status de autora que produz grande literatura, pois atinge verdadeiro equilíbrio no que revela ser suas duas rendência - a forma e o informe, que atingem equilíbrio numa narrativa que previlegia as sensações e as ideias. E a obra de Clarice vai além: é para ser lida, relida, relida, relida e relida.


* Os dados sobre a entrevista de Beth Goulart foram extraídos da FolhaOnline Ilustrada - entrevista concedida a Lucas Neves, em 20.9.2009, 8h30.
Imagens: Clarice Lispector, Capa do programa do Espetáculo e Beth Goulart como Clarice - todas disponíveis no Google Images.

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