Revista Philomatica

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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A ignorância e a depuração do gosto

Treslendo a biografia de Machado de Assis escrita por R. Magalhães Júnior, observei as referências do autor às crônicas machadianas. As alusões, no caso, eram as cantoras de ópera que empolgavam o público carioca na segunda metade do século XIX. Um contumaz leitor do Bruxo do Cosme Velho, sem dúvida há de se lembrar da Candiani, que arrebatava almas e corpos e fizera com que os cavalos de seu carro fossem substituídos por rapazes saídos de um fã clube entusiasta. Depois, vieram a Stoltz, a Charton, a Lagrange, a Casolini, a La Grua... Todas passaram pela pena de Machado.
Portanto, não há razão para que eu não fale de nossas atuais celebridades, ainda que sob os auspícios da canção: descendo a ladeira. Ora, o assunto me veio ao espírito depois de ler a publicação de um amigo. Nela, havia uma lista dos cantores que costumávamos ouvir nas décadas oitenta e noventa e o que se costuma ouvir hoje. Come de praxe, o mais interessante nesse tipo de comparação é a opinião dos internautas, em geral, marcada por profunda obtusidade. E, nesse caso, não foi diferente. Abstive-me de qualquer comentário, haja vista tratar-se de uma página pessoal e não conhecer o autor do comentário que me leva a essa rápida reflexão.
Pois bem, em consonância à polarização e ao vitimismo atual, um jovem tascou a seguinte pérola: “Isso só mostra que a arte acima de tudo não tem a necessidade de ser bela, mas de servir como voz além de entreter. Incomoda tanto assim aos privilegiados que os marginalizados ganhem voz? As vanguardas, ainda que movimentos elitistas, não ensinaram nada para a literatura? Triste quem pensa pequeno...”.
Ora, à medida que os anos avançam o respeito à juventude é algo que não se pode ignorar. Contudo, respeitar não implica qualquer deferência à sobeja atrofia intelectual de nossos dias, em que o atraso cultural é uma doença quase que universal. Não sei se o jovem em questão, cujos neurônios padecem certo estiolamento próprio da idade, estaria disposto a me entender, mas vamos lá: primeiro, ele afirma que “a arte não tem a necessidade de ser bela”. Não tiro sua razão, mas peço que se atenha às sábias palavras de filósofos como Sri Ram, por exemplo, para quem a evolução nada mais é que a depuração do gosto. E vou mais longe, meu caro efebo:  a arte é um caminho de conhecimento à procura do Belo, do imutável, e a música que você defende está fadada às lixeiras das gravadoras, preservando-se, muito raramente, na cabeça de pessoas habituadas à leitura de cartilhas ideológicas cujo conselho é a repetição e têm como impedimento maior, a reflexão, o questionamento.
Nem toda expressão cultural pode ser chamada de arte, mancebo! A arte, já afirmava Schopenhauer, é “a exposição de ideias”, “o modo de consideração das coisas independente do princípio da razão”. Que ideias veiculam a música que você diz representar os excluídos, que voz concedem elas aos marginalizados? O relativo direito ao contorcionismo enquanto se afirma ser uma vadia todo dia? Arte é algo que toca a universalidade humana, revela-se como inspiração e dá ao homem a experiência subjetiva de reconciliar-se com a natureza e a liberdade, afirmava Kant.
A liberdade da qual fala Kant não é definitivamente o direito à lascívia pura e simplesmente. E, já que reclama o fato de as vanguardas não terem ensinado nada à literatura, aconselho-o a ler Sade. Em Justine ou Os Infortúnios da virtude, Sade não só faz uma apologia ao crime, como explora de forma exponencial a crueldade e as liberdades do corpo como do espírito e, se não me falha a memória, lá, caro mancebo, Sade dedica três ou quatro páginas às vantagens de se dar o cu. Como vê, a literatura foi além das vanguardas afeitas aos grafites, às quais provavelmente se refere.
Nota-se em sua fala total desconhecimento do que se passou há apenas uma década! Falta de leitura, suponho! Os privilegiados que condena por gostarem de Zé Ramalho, Gal Costa, Milton Nascimento, Renato Teixeira, Legião Urbana, Caetano, se não sabe, meu caro jovem, lotavam estádios nas décadas de oitenta e noventa; eram jovem sonhadores, assim como você. Eram filhos de operários e, detalhe, a grande maioria sequer pode frequentar uma universidade, pois heroicamente tinha que defender seu bocado de pão. Nem por isso se faziam de vítimas, mas lutavam, assim como os que vieram logo depois lutaram pelas “diretas já”.
Ah!, então não havia privilegiados?! Sim, havia! Muitos, inclusive, marcharam as trilhas da política e tornaram-se mais privilegiados ainda; hoje, perfazem as fileiras de nossa elite política, partidária de foros privilegiados, direitos muitos, mas quase nenhum dever!
É evidente que não são esses os privilegiados que alfineta. Em seu relativizado discurso, nota-se que lê a cartilha de forma um tanto estúpida e não se dá conta de que a mesma elite que defende, acreditando tratar-se de representantes dos marginalizados é aquela que escolhe suas músicas. E mais: Platão, na República, alertava para a qualidade da música que os governantes davam às pessoas, sem falar, é claro, em Plutarco, que já afirmava que música ruim e canções grosseiras engendram licenciosidade.
Por fim, meu jovem: não maldiga a literatura, leia Sade e ouça boa música.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Annie Lennox e os desmemoriados

O que Annie Lennox tem a ver com a falta de memória? A resposta, leitor, se se dispuser a um pequeno esforço, ainda que padeça de alguma anamnese, verá que tem lá seus lastros nos célebres versos do profeta, dado que uma geração vai, e outra geração vem. Bem, as predições do áuspice afirmam que nesse movimento pendular o que permanece é a terra, por isso, tudo o que venha a dizer digo sob as asas da ressalva e da ambiguidade.
Não sei em que grau de perda de memória você se inscreve, mas Annie Lennox é uma cantora; sim, daquelas que comumente faziam uso do aparelho fonador, ao contrário das atuais estrelas da música, cujos glúteos bombados e em movimento produzem sons supostamente admissíveis na escala musical. Lembrou-se de seu ídolo da música e já está a resmungar, achincalhando-me conservador? Vá lá, estravase, bote seu lado fã clube para fora, não me importo! Mas aposto que ao lembrar-se dele, se não padecer de qualquer encefalopatia, serão lembranças da ordem corpórea e não sonora! Pronto, matei a charada! Seu ídolo canta com o cul!
Após a provocação, vamos ao caso Annie Lennox: a Cantora, célebre já nos anos 80, quando fazia parte da banda Eurythmics, vendeu cerca de 75 milhões de discos planeta afora e foi premiada com Grammys e Oscars. Portanto, seu Lattes dispensa apresentações, até mesmo porque as mulheres escocesas não são conhecidas pelo quesito derrière.
Ocorre que semana passada a representante de uma rádio comercial americana enviou-lhe um e-mail dizendo ter apreciado muito suas músicas, que ouvira pela internet. Até aí nada de novo. Contudo, ato contínuo ao elogio, diz ser coordenadora de músicas e estar à procura de artistas que considera ter potencial, para tocá-los em sua rádio.
Não bastasse apresentar-se como completa desmemoriada, sobretudo tratando-se de seu mundo, a música, a tal coordenadora pede a Lennox que envie um mp3 de seu último single, informando que o encaminharia ao diretor de programação, para ver se ele estaria interessado em tocá-lo. Completo desconhecimento da comida que mastiga todos os dias! Fosse eu o dono da rádio!
Mas fosse a perda da memória um caso localizado de gafe, vá lá! O fato é que tem se tornado clichê afirmarmos que somos um povo sem memória - veja que já me locomovi geograficamente. À medida em que envelhecemos, tornamo-nos autobiográficos, o repertório aumenta, repetimos histórias tal aquela tia velha lá do interior que, a cada nova visita, nos submete à narrativas há muito conhecidas. Mas não se trata disso leitor, trata-se da convivência com uma geração nada curiosa do passado recente, que pouco importa em saber o porquê disto ou daquilo, a origem, e quiçá, nada afeita à leitura e ao conhecimento. Basta saber fazer o quadradinho!
Para esses tantos o conhecimento é descartável, ondulante, limitam-se à última moda, sem se darem conta de que são, na maioria das vezes, alienados pela indústria do entretenimento. Esta, embora credite a seus produtos de diversão o status de cultura, tão logo os venda, inventa outros para assim manter girando a roda do consumo. A cultura, desse modo, vê-se alijada da sociedade de massas. Afinal, a arte, para o bem ou para o mal, incomoda o sujeito, interrompe seu sono fantasioso, obriga-o a pensar.
Vem-me ao espírito a última onda da literatura especializada em sangue, o dos vampiros. Desconheço-a por inteiro e creio mesmo que ali haja muitos bons prosadores, contudo, o exercício de engavetamento promovido pela indústria do entretenimento apaga a cultura passada, de maneira que arrisco afirmar que apenas uma reduzida gama de leitores dá-se ao trabalho de ir atrás do romance gótico, de um Abraham Stoker, por exemplo. Este, na toada da historieta da Annie Lennox, figuraria autor iniciante de potencial sucesso na literatura vampiresca.
E não falemos da política torva e sanhuda e suas personagens, cuja defenestração é mais que merecida; estas, no entanto, sobem à cena e ganham protagonismo a cada eleição. Culpa de um bando de milhões de desmemoriados e interesseiros, cujo horizonte não vai além das ideias que rondam o próprio umbigo?

Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/