Vivemos
tempos imperativos em que os discursos devem ser pautados pela diferença.
Contudo, há diferenças e diferenças, e, parece-me, as diferenças de uns são
mais robustas que as de outros. Esquerda e direita digladiam-se ao tentar impor
suas opiniões. Aquela história de que cada um deve ocupar o seu quadrado é
deixada de lado, e a tal ponto que uns e outros só consideram um quadrado
quando este lhe convém, caso contrário, o quadrado torna-se esfera. E é justamente
aí que as ideias não se afinam. Um quadrado nasceu para ser quadrado, dizem, por
que de um momento para outro decide ser esfera? Leitor, quadrados reproduzem
quadradinhos, jamais esferas, dizem outros. Pensando assim, muitos decidem pelo
extermínio de toda quadroesfera que teima banhar-se em purpurina!
Tolerância
e intolerância são seletivas! Por isso, creio, nada mais oportuno que relembrar
o aforismo apócrifo atribuído a Voltaire, algo que pode ser a pá de cal para
enterrar de vez qualquer contradito àquilo que não defendo. Trata-se da célebre
frase “não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que
você tenha o direito de dizê-lo”. Creditada a Voltaire, foi cunhada por Evelyn
Beatrice Hall, em 1906, na sua obra The
Friends of Voltaire, muito provavelmente por ter ele defendido Helvétius,
ainda que tenha deplorado De l’esprit.
Veja,
Voltaire defendeu o direito de Helvétius expressar-se, ainda que não estivesse
inteiramente de acordo com seu pensamento empirista-materialista. Lembrei-me
disto depois da polêmica em torno da exposição Queermuseu, cancelada pelo Banco Santander, instituição que ora
cito sem ganhar um mísero caraminguá!
Houve
exageros de ambas as partes: um jornal sair com a manchete de que a
intolerância voltou a assombrar a arte pareceu-me um exagero. Afinal, penso,
Voltaire teria repetido o que disse à época em relação à polêmica em torno da
obra de Helvétius: “Que alarido por causa de uma omelete!” Não tivesse um
grupelho lançado mão de armadura e espada, e saído em cruzada contra o que
afirmam atentar à moral e aos bons costumes, só uma meia dúzia de gatos
pingados é que iriam até ao Santander (de novo - e a contragosto!) conferir
traços rudimentares e garatujas borradas sobre imagens artisticamente ainda
infantilizadas.
A
gritaria fica mais incompreensível se tomarmos exemplos anteriores. Relembrem o
ocorrido com Flaubert e Laurent Pichat, ou até mesmo o próprio Baudelaire, face
ao procurador Pinard, que também clamou à decência pública, à moral e aos bons
costumes e etc etc... E o que Pinard ganhou com isso? Nada! Já Flaubert e
Baudelaire asseguraram cadeira no Olimpo literário. Mas atenção! Não
exageremos! Não estou a comparar Madame
Bovary e As Flores do Mal com os
desenhinhos de Bia Leite e o ménage à
trois no papel de pão gozado de Adriana Varejão. Mas gostei do JC Deusa
Shiva, de Fernando Baril!
Não
entendi até agora o porquê da gritaria toda; os contrários acabaram por avalizar
o que repudiavam, garantindo-lhe visibilidade. Ora, a exposição não generaliza
nada, não impõe nada, não induz a nada, até mesmo porque se alguma reflexão
poderia ser tirada dali, após todo esse bate-boca, nada sobrou além de uma intolerância
polarizada. A vida é assim como ela é: Auerbach já dizia que “o histórico
contém em cada indivíduo uma pletora de motivos contraditórios”. Povos, por
mais identificáveis que possam parecer, são ambíguos, vacilantes, plurais,
diferentes.
Por
fim, creio que uns e outros tentam nos impor uma certa univocidade, e não somos
assim! Somos feitos de camadas, slogans
diferentes. Nós, brasileiros, só somos unívocos quando nos dispomos a uma
grosseira simplificação, numa Copa do Mundo, por exemplo, chorando uma derrota
de 7 a 1. Há univocidade também na guerra. Toda essa exasperação, para quê? É
guerra que queremos? Sequer avaliamos a qualidade dos nossos canhões e,
ademais, jamais empunharíamos uma espingarda de dois canos como a do filósofo
de Ferney.
Imagem: Casa Vogue, de Cibele
Bastos; foto Santander
Cultural/Divulgação.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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