Revista Philomatica

sábado, 16 de setembro de 2017

Queermuseu: alarido por uma omelete


Vivemos tempos imperativos em que os discursos devem ser pautados pela diferença. Contudo, há diferenças e diferenças, e, parece-me, as diferenças de uns são mais robustas que as de outros. Esquerda e direita digladiam-se ao tentar impor suas opiniões. Aquela história de que cada um deve ocupar o seu quadrado é deixada de lado, e a tal ponto que uns e outros só consideram um quadrado quando este lhe convém, caso contrário, o quadrado torna-se esfera. E é justamente aí que as ideias não se afinam. Um quadrado nasceu para ser quadrado, dizem, por que de um momento para outro decide ser esfera? Leitor, quadrados reproduzem quadradinhos, jamais esferas, dizem outros. Pensando assim, muitos decidem pelo extermínio de toda quadroesfera que teima banhar-se em purpurina!
Tolerância e intolerância são seletivas! Por isso, creio, nada mais oportuno que relembrar o aforismo apócrifo atribuído a Voltaire, algo que pode ser a pá de cal para enterrar de vez qualquer contradito àquilo que não defendo. Trata-se da célebre frase “não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizê-lo”. Creditada a Voltaire, foi cunhada por Evelyn Beatrice Hall, em 1906, na sua obra The Friends of Voltaire, muito provavelmente por ter ele defendido Helvétius, ainda que tenha deplorado De l’esprit.
Veja, Voltaire defendeu o direito de Helvétius expressar-se, ainda que não estivesse inteiramente de acordo com seu pensamento empirista-materialista. Lembrei-me disto depois da polêmica em torno da exposição Queermuseu, cancelada pelo Banco Santander, instituição que ora cito sem ganhar um mísero caraminguá!
Houve exageros de ambas as partes: um jornal sair com a manchete de que a intolerância voltou a assombrar a arte pareceu-me um exagero. Afinal, penso, Voltaire teria repetido o que disse à época em relação à polêmica em torno da obra de Helvétius: “Que alarido por causa de uma omelete!” Não tivesse um grupelho lançado mão de armadura e espada, e saído em cruzada contra o que afirmam atentar à moral e aos bons costumes, só uma meia dúzia de gatos pingados é que iriam até ao Santander (de novo - e a contragosto!) conferir traços rudimentares e garatujas borradas sobre imagens artisticamente ainda infantilizadas.
A gritaria fica mais incompreensível se tomarmos exemplos anteriores. Relembrem o ocorrido com Flaubert e Laurent Pichat, ou até mesmo o próprio Baudelaire, face ao procurador Pinard, que também clamou à decência pública, à moral e aos bons costumes e etc etc... E o que Pinard ganhou com isso? Nada! Já Flaubert e Baudelaire asseguraram cadeira no Olimpo literário. Mas atenção! Não exageremos! Não estou a comparar Madame Bovary e As Flores do Mal com os desenhinhos de Bia Leite e o ménage à trois no papel de pão gozado de Adriana Varejão. Mas gostei do JC Deusa Shiva, de Fernando Baril!
Não entendi até agora o porquê da gritaria toda; os contrários acabaram por avalizar o que repudiavam, garantindo-lhe visibilidade. Ora, a exposição não generaliza nada, não impõe nada, não induz a nada, até mesmo porque se alguma reflexão poderia ser tirada dali, após todo esse bate-boca, nada sobrou além de uma intolerância polarizada. A vida é assim como ela é: Auerbach já dizia que “o histórico contém em cada indivíduo uma pletora de motivos contraditórios”. Povos, por mais identificáveis que possam parecer, são ambíguos, vacilantes, plurais, diferentes.
Por fim, creio que uns e outros tentam nos impor uma certa univocidade, e não somos assim! Somos feitos de camadas, slogans diferentes. Nós, brasileiros, só somos unívocos quando nos dispomos a uma grosseira simplificação, numa Copa do Mundo, por exemplo, chorando uma derrota de 7 a 1. Há univocidade também na guerra. Toda essa exasperação, para quê? É guerra que queremos? Sequer avaliamos a qualidade dos nossos canhões e, ademais, jamais empunharíamos uma espingarda de dois canos como a do filósofo de Ferney.



Imagem: Casa Vogue, de Cibele Bastos; foto Santander Cultural/Divulgação. 
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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