“O Evangelho fala ao meu coração”, escreveu um dia Rousseau. Machado
de Assis, que costumava escrever nas horas mortas, em uma de suas crônicas
afirmou que a tragédia do Gólgota faz parte dessa meia dúzia de assuntos que
não envelhecem nunca. E mais: Machado dizia que “o belo sermão da Montanha, as
parábolas de Jesus, os duros lances da semana divina, desde a entrada em
Jerusalém até à morte no calvário, e as mulheres que se abraçaram à cruz, [...]
tudo isso [...] faz sentir e pasmar”.
O
Filho do Homem, em um de seus últimos e dolorosos lances, pediu ao Pai que perdoasse
os homens porque estes não sabiam o que faziam. Se não me falha a memória,
depois de ter chegado ao local da crucificação e, diga-se, ter sido preterido a
Barrabás, o ladrão. Coloquei a última parte do parágrafo anterior no
imperfeito, embora desconfie ter cometido não um erro gramatical, mas moral.
Talvez o tempo presente verbal fosse mais justo com nosso estado de coisas.
Pensando
nas linhas em branco à frente, não deixo também de pensar em Rousseau e
Machado, homens que talvez soubessem o que faziam. Ocorre-me também que faziam
parte, de certo modo, daquela pequena parcela que maneja as ideias com
sensatez, longe da maioria, que mantém as engrenagens girando por pura força
bruta!
De
qualquer modo, mesmo entre os pecadores surge uma centelha de esperança. Entre
as notícias da última semana, uma delas chamou a atenção por seu caráter
insólito. Republicada em diversos periódicos, poucos notaram um quê de poeta e
louco no agressor do ator que representava o soldado romano, sim, porque só
poetas são gênios e só os loucos deliram – e está aí Aristóteles que não me
deixa mentir! Gente normal, centrada em seus próprios interesses, defende
Barrabás!
Vá
lá, contextualizando a prosa acima: na semana santa passada, em uma
representação da Crucificação, na cidade de Nova Hartz, Rio Grande do Sul, um
homem invadiu o palco para defender O Cristo, atacando o ator que representava
um soldado romano, justamente no instante em que este fustiga o Filho do Homem
com uma espada. O vídeo tornou-se viral e provocou risos e comentários da massa
hipócrita, que, não sei porque razão, resolve praticar o humanismo e a
caridade, nessa única semana, esquecendo-se de que os anos são feitos de dias,
semanas e meses.
O
fato é que depois de os homens terem optado por Barrabás e matado o Filho do
Homem, alcunha que o identificava com a humanidade, os homens mataram o próprio
Pai. Célebre é a frase: “Deus está morto.” Contudo, alguns poucos insistem em
fugir da desesperança, o que irrita muita gente. Recebi, há dias, trechos de
uma entrevista antiga em que o jornalista Geneton Moraes Neto entrevistava o
poeta Ariano Suassuna (ambos mortos). Veja você leitor, o porquê de alguns
poucos se apegarem ao metafísico e disso fazerem vibrar a vida:
Geneton:
Você (pausado), acredita em Deus?
Suassuna:
Acredito!
(Olhar
incrédulo de Geneton.)
Geneton
(olhar irônico): Como é isso?
Suassuna:
Eu não conseguiria conviver com essa visão amarga, dura, atormentada e
sangrenta do mundo. Então, ou existe Deus ou então a vida não tem sentido
nenhum. Bastaria a morte. Leandro Gomes de Barros, a meu ver, formulou muito
melhor o que eu disse. Essa pergunta... que a pergunta mais séria que as
pessoas que não acreditam em Deus pode fazer aos que acreditam. Repare, ele
disse: “se eu me encontrasse com Deus, seu conversasse com Deus, iria lhe
perguntar: por que é que sofremos tanto, quando viemos pra cá? Que dívida é
essa que o homem tem que morrer pra pagar? Perguntaria também como é que ele
feito, que não dorme, não come, e assim vive satisfeito. Por que foi que ele
não fez a gente do mesmo jeito? Por que existem uns felizes? E outros que
sofrem tanto? Nascidos do mesmo jeito, criados no mesmo canto? Quem foi
temperar o choro e acabou salgando o pranto?”
Veja
que coisa linda!, afirma Suassuna.
(Olhar
irônico e incrédulo de Geneton! Olhar da razão superior!)
Suassuna
(continua): Isso coloca em questão a própria existência de Deus, porque é como
se Deus tivesse querido o choro e acabou errando na mão, como se Deus fosse
capaz de dar um erro, e infringido um sofrimento terrível ao ser humano. “Quem
foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?” Pois é, então Deus pra mim é
uma necessidade. Se eu não acreditasse em Deus eu seria um desesperado.
(Olhar
e expressão de fé de Suassuna.)
Mas
Suassuna era poeta – ou louco, pode argumentar muita gente, sobretudo a
juventude desesperançada e perdida de hoje. Mas não é só a juventude, há
aqueles que já se tornaram autobiográficos, e, por se acharem transcendentais,
matam o Filho do Homem quotidianamente. Ontem, por exemplo, o historiador Boris
Fausto comentou a empreitada do ex-presidente condenado à prisão. Segundo Boris
Fausto, o ex-presidente está empenhado na construção de uma imagem grandiosa, a
do Cristo, que se sacrificou pela humanidade; um Cristo leigo, no caso. E nós,
mortais, continuamos a escolher Barrábas a cada quadriênio! Pobres de nós!
Continuamos a não saber o que fazemos!
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