Leitor
obtuso, por mais que você se esconda na crosta da hipocrisia moral e religiosa
que protege a sagrada família brasileira, estou certo de que tem lá os seus
segredos. Não há quem não os tenha. Revelá-los, fica por conta de alguns poucos
corajosos. Para outros, no entanto, a literatura e as artes são espaços para
inconfessas confidências. Leitores são como matilhas, dividem-se em grupos: alguns,
amplos e populares; outros, restritos, diminutos, mas todos dispostos à caça.
Há grupos que saem à noite em busca da carne tenra, apetitosa, promíscua e
pecaminosa; há outros que procuram mistérios, desejos gozosos e recônditos,
dissimulados nas entrelinhas, nas dobras da páginas, nas curvas macias das
lombadas, sob a contra capa e as cantoneiras. O foda é que até mesmo esse grupo
de leitores chegou à conclusão de que a literatura séria é coisa para poucos,
muito poucos, arcaísmo quanto o latim, embora escrita em vernáculo.
Quem
lê Guimarães, Machado, Hilda Hilst? Poucos, creiam-me. Hoje, nem mesmo escritos
sobre a boa literatura atraem leitores. A prova, encontrei-a nas asneiras que
semanalmente aqui escrevo.
Quando
falo da perversão religião ou dos prazeres do cu, o público leitor aumenta: a
primeira, arrisco, desperta a ira de fanáticos, saudosos da santa inquisição;
os últimos, desperta nos que leem a busca por alguma correspondência, afinal,
uma cunilíngua e uma borboleta paraguaia devem ter lá sua nesga simbolista.
Não
sou Hilda Hilst, mas estou certo de que o leitor quer mesmo é bandalheira.
Corri os olhos pelos sites de notícia
e a matéria mais lida tratava-se da suruba da Anitta. O livro Furacão Anitta, de Leo Dias (?), uma
biografia “não autorizada”, sequer despertou o interesse do público, mas o
comentário de que a celebridade gosta de transar a três viralizou. A ressalva,
feita pelo jornalista, foi que Anitta não fizera ménage durante o casamento, afinal, nossa hipocrisia tem limite. Um
ménage aqui, uma suruba ali, tudo
bem, mas nem tudo deve ser dito e feito, sobretudo no sagrado do lar.
Hilda
Hilst afirmou um dia que só começou a escrever bandalheira em razão da escassez
de leitores para sua literatura séria. Não estava errada: a literatura séria obriga
a reflexão e o leitor sedento de pornografia gosta mesmo é de putaria e
bandalheira! Refletir? Não, jamais!
Mas
caiu do cavalo aquele leitor que cavalga em espaços sujos, promíscuos e
pegajosos do gozo anterior de prostitutas e prostitutos, de pais e mães de
família. A escritora não! Hilda não se dá a tanto, não se rebaixa. Sua
literatura oferece níveis, degraus a subir: engana-se o leitor que está só à
procura da devassidão, da transgressão e do sujo.
Hilda
aproxima o divino do profano: toda a sujidade daquele que foi feito à
semelhança de Deus é escancarada. “Deus é quase
sempre essa noite escura, infinita. Mas ele pode ser também um flamejante
sorvete de cerejas. É uma escuridão absoluta, mas de repente te vem uma volúpia
doce lá dentro.”[1]
Em Estar sendo, ter
sido (1997), Hilda, apresenta Deus no lugar mais improvável – e reprovável
-, porém o mais desejado pelos leitores sedentos de pornografia. Face à morte e
delirando, o velho Vittorio repensa a vida e, obstinado com a ausência do Deus
que o habita, pede a empregada que procure vestígios do sagrado em uma parte de
seu corpo na qual jamais imaginaríamos experimentar a presença de Deus:
[…] sabe,
Rosinha, ele está aí dentro, estou sentindo
onde seo
Vittorio, onde?
No meu cu,
idiota, ah, está bem, não chora, já vi que você não entende nada de deus, eu
precisava é falar com Dom Deo, mostrar-lhe o único buraco aqui na Terra onde
deus habita.[2]
Ao
leitor que renega a literatura, mas gosta de uma putaria, um pouco de reflexão:
se és feito à semelhança de Deus, teu corpo é obra divina, teu cu é obra
divina! E nem vou perguntar se Deus tem cu.
Até
nossos próximos encontros gozosos – caso apareça, leitor -, e, para justificar
o título, que venha acompanhado!
[1] Entrevista concedida a
Caio Fernando Abreu, em 1987. Em: Fico besta quando me entendem, 2013, p. 99.
Nenhum comentário:
Postar um comentário