Revista Philomatica

sábado, 20 de abril de 2019

As delícias do sexo a três


Leitor obtuso, por mais que você se esconda na crosta da hipocrisia moral e religiosa que protege a sagrada família brasileira, estou certo de que tem lá os seus segredos. Não há quem não os tenha. Revelá-los, fica por conta de alguns poucos corajosos. Para outros, no entanto, a literatura e as artes são espaços para inconfessas confidências. Leitores são como matilhas, dividem-se em grupos: alguns, amplos e populares; outros, restritos, diminutos, mas todos dispostos à caça. Há grupos que saem à noite em busca da carne tenra, apetitosa, promíscua e pecaminosa; há outros que procuram mistérios, desejos gozosos e recônditos, dissimulados nas entrelinhas, nas dobras da páginas, nas curvas macias das lombadas, sob a contra capa e as cantoneiras. O foda é que até mesmo esse grupo de leitores chegou à conclusão de que a literatura séria é coisa para poucos, muito poucos, arcaísmo quanto o latim, embora escrita em vernáculo.
Quem lê Guimarães, Machado, Hilda Hilst? Poucos, creiam-me. Hoje, nem mesmo escritos sobre a boa literatura atraem leitores. A prova, encontrei-a nas asneiras que semanalmente aqui escrevo.
Quando falo da perversão religião ou dos prazeres do cu, o público leitor aumenta: a primeira, arrisco, desperta a ira de fanáticos, saudosos da santa inquisição; os últimos, desperta nos que leem a busca por alguma correspondência, afinal, uma cunilíngua e uma borboleta paraguaia devem ter lá sua nesga simbolista.
Não sou Hilda Hilst, mas estou certo de que o leitor quer mesmo é bandalheira. Corri os olhos pelos sites de notícia e a matéria mais lida tratava-se da suruba da Anitta. O livro Furacão Anitta, de Leo Dias (?), uma biografia “não autorizada”, sequer despertou o interesse do público, mas o comentário de que a celebridade gosta de transar a três viralizou. A ressalva, feita pelo jornalista, foi que Anitta não fizera ménage durante o casamento, afinal, nossa hipocrisia tem limite. Um ménage aqui, uma suruba ali, tudo bem, mas nem tudo deve ser dito e feito, sobretudo no sagrado do lar.
Hilda Hilst afirmou um dia que só começou a escrever bandalheira em razão da escassez de leitores para sua literatura séria. Não estava errada: a literatura séria obriga a reflexão e o leitor sedento de pornografia gosta mesmo é de putaria e bandalheira! Refletir? Não, jamais!
Mas caiu do cavalo aquele leitor que cavalga em espaços sujos, promíscuos e pegajosos do gozo anterior de prostitutas e prostitutos, de pais e mães de família. A escritora não! Hilda não se dá a tanto, não se rebaixa. Sua literatura oferece níveis, degraus a subir: engana-se o leitor que está só à procura da devassidão, da transgressão e do sujo.
Hilda aproxima o divino do profano: toda a sujidade daquele que foi feito à semelhança de Deus é escancarada. “Deus é quase sempre essa noite escura, infinita. Mas ele pode ser também um flamejante sorvete de cerejas. É uma escuridão absoluta, mas de repente te vem uma volúpia doce lá dentro.”[1]
Em Estar sendo, ter sido (1997), Hilda, apresenta Deus no lugar mais improvável – e reprovável -, porém o mais desejado pelos leitores sedentos de pornografia. Face à morte e delirando, o velho Vittorio repensa a vida e, obstinado com a ausência do Deus que o habita, pede a empregada que procure vestígios do sagrado em uma parte de seu corpo na qual jamais imaginaríamos experimentar a presença de Deus:
[…] sabe, Rosinha, ele está aí dentro, estou sentindo
onde seo Vittorio, onde?
No meu cu, idiota, ah, está bem, não chora, já vi que você não entende nada de deus, eu precisava é falar com Dom Deo, mostrar-lhe o único buraco aqui na Terra onde deus habita.[2]
Ao leitor que renega a literatura, mas gosta de uma putaria, um pouco de reflexão: se és feito à semelhança de Deus, teu corpo é obra divina, teu cu é obra divina! E nem vou perguntar se Deus tem cu.
Até nossos próximos encontros gozosos – caso apareça, leitor -, e, para justificar o título, que venha acompanhado!



[1] Entrevista concedida a Caio Fernando Abreu, em 1987. Em: Fico besta quando me entendem, 2013, p. 99.
[2] Estar sendo, ter sido, 2006, pp. 101-102.

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