Revista Philomatica

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Livros das sagas Harry Potter e o Crepúsculo são queimados em auto de fé na Polônia


Não, leitor, não se trata de mais um ato das Inquisições Espanhola e Portuguesa, mas sim de mais um episódio em que a ignorância, despudoradamente, grassa sob nossos olhos, na tentativa de reforçar algum obscurantismo em almas ainda guiadas por certa metafísica teológica ou pura carolice, seja lá o que isso for.
O fato é esta semana sacerdotes católicos queimaram livros das sagas Harry Potter e Crepúsculo, na cidade polonesa de Koszalin. Os clérigos consideraram-nas sacrílegas e justificaram seu ato afirmando a necessidade e “obedecer à palavra divina”. Esses religiosos, oriundos de um grupo denominado ‘SMS dos Céus’, sustentam que os livros promovem a bruxaria. Leitor, se você vislumbrar nisso ecos medievais e inquisitórios, mantenha a sanidade, estamos sim em 2019. Não é delírio!
A cerimônia, promovida pelos padres católicos, foi fotografada e publicada no Facebook, o que provocou fortes reações. Nas imagens, vê-se três sacerdotes que levam uma cesta de livros, incluindo alguns da série Harry Potter, de J. K. Rowling, e do vampiro Edward Cullen, de Stepheine Meyer. No auto de fé, enquanto os padres entoam rezas, ardiam na cesta, além dos livros, outros objetos, como uma máscara de estilo africano, um guarda-chuva da Hello Kitty e uma estatueta hindu.
Na publicação,  os integrantes do ‘SMS dos Céus’, reproduzem uma parte do Deuteronômio, um dos livros do Antigo Testamento, cuja frase “vocês queimarão seus ídolos com fogo”, justifica a ação dos padres, que exortam os fiéis a destruírem os “inimigos de Deus”.
A ação é controversa, é claro, sobretudo porque intolerantes e fanáticos arrogam-se o direito de falar em nome de Deus. A pergunta que me vem ao espírito é rasteira: “Qual Deus?” A narrativa, leitor, é a mesma que se espraia em nosso torrão tupiniquim, em que uma certa autoridade do MEC (contratada, demitida e não empossada), julga-se no direito de atribuir apostos a Deus, fazendo do Altíssimo matemático e geógrafo. Por sua vez, Jan Kucharski, exorcista e pároco de Gdansk, no norte da Polônia, afirma que “não se tratava de queimar nenhum livro, mas objetos associados à magia e ao ocultismo”.
A Polônia, país beato que corroborou o genocídio judeu impetrado pelos nazistas, parece-me, tornar-se-á a mais nova teocracia na Europa, à moda de países do Oriente, com a diferença de que em vez da crescente, teremos a cruz; mas não se engane, a dose de intolerância e fanatismo será equivalente. Embora tenham recusado comentar o auto de fé, o episcopado e o bispo local reconheceram-no após sua visibilidade, afinal, antes de queimarem livros, amuletos e talismãs trazidos pelos fiéis, afirmaram que era “hora de colocar as coisas em ordem”.
A publicação do grupo religioso “SMS dos Céus” tornou-se viral e alguns fizeram comparações com a Alemanha nazista, referindo-se às queimas de livros de 1933, sob Hitler, quando vários intelectuais judeus e alemães pereceram em autos de fé. “Eu gostaria de pensar que isso é uma piada. Sério? Como as pessoas podem queimar literatura de fantasia no século XXI em um ritual de mau gosto?”, pergunta um internauta desorientado, perdido no tempo, e confuso com o obscurantismo. Por outro lado, outros aprovaram a ação dos padres: “Devemos parar a idolatria e o fanatismo que são contrários à nossa ética. Eu valido esta ação”, pode-se ler também.
Esta não é a primeira vez que a saga do mundialmente famoso mago Harry Potter atrai a ira de fanáticos religiosos. Por delírio de intolerantes, que acusam-na de suposto conteúdo oculto e satânico, a série de J. K. Rowling foi alvo de representantes de vários cultos. Nos Estados Unidos, por várias vezes tentou-se proibir Harry Potter. O debate ultrapassou as fronteiras americanas e o simpático mago teve-se que ver com os mais virulentos discursos de grupos evangélicos fundamentalistas de igrejas evangélicas, católicas, ortodoxas e anglicanas. Embora a oposição à série venha principalmente de cristãos, alguns países muçulmanos sentiram que os temas contidos na história conflitavam com a fé de Maomé. Em 2002, livros foram banidos de escolas nos Emirados Árabes Unidos.
J.K. Rowling negou várias vezes que queria atrair crianças para a bruxaria; em 1999, disse à CNN: “Eu não criei essa história para incentivar as crianças a praticar bruxaria.” Em 2000, ela, que nunca havia se pronunciado sobre sua religião, disse: “Sim, eu sou cristã, o que parece incomodar mais alguns religiosos do que se eu tivesse afirmado que Deus não existe”. A controvérsia, o fanatismo e a intolerância continuam, de modo que, se por um lado a autora vira e mexe é obrigada a se justificar; por outro, Fernando Báez, autor do vigoroso A Destruição universal da destruição dos livros, corre o risco de acabar com um livro obsoleto, isto, é claro, se não se dispuser a escrever mais alguns capítulos.  

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