Revista Philomatica

terça-feira, 30 de abril de 2019

Quasímodo chorou


A semana não foi das melhores para os amantes das artes: na segunda-feira à noite a Catedral de Notre-Dame de Paris foi parcialmente consumida pelas chamas, deixando atrás de si uma multidão dividida: os consternados com a tragédia e os que boquejaram quando começaram a afluir os donativos para a restauração da centenária Catedral.
A pobre e maledicente turma do boquejo, penso, deve ser ignorada, até mesmo porque não estou aqui para falar da Escola do Ressentimento. Os estudantes islâmicos da UNEF, tênias no estômago francês, e os muçulmanos que comemoraram o incêndio são provas da existência de um radicalismo doentio e de uma intolerância perversa, por isso e só por isso, são-me indiferentes.
A Catedral, cuja construção começou no ano de 1163, pelo bispo Maurice de Sully, é inspiradora e frequentou as melhores páginas da literatura e da poesia francesa. Rabelais, Peguy, Claudel, Nerval e Balzac são alguns dos que se inspiraram na Notre-Dame.
Talvez a obra que maior repercussão deu à Catedral foi Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo. Um dos protagonistas da trama, o corcunda Quasímodo, é uma das personagens mais feias e populares da história da literatura; coxo, ensurdeceu devido à atividade de sineiro dos sinos de Notre-Dame. Quasímodo também é a chave para a justaposição do grotesco e do sublime em Notre-Dame de Paris, algo que Hugo faz de modo extraordinário.
Na segunda-feira, Quasímodo chorou.
Cego de um olho, aos quatro anos Quasímodo é abandonado pelos pais por causa de suas deformidades físicas. Recolhido pelo padre Claude Frollo, a ele se dedica inteiramente, passando a morar na catedral de Notre-Dame. Quasímodo, o nome, recebera-o de Frollo em referência à festa homônima, celebração católica realizada no primeiro domingo após a Páscoa, porque este fora o dia em que o padre o encontrara. O pequeno abandonado tornar-se-ia um dia o responsável pelo badalar dos sinos da Catedral.
Rejeitado pela multidão, que não apreciava ver um corcunda, caolho e coxo circulando por entre ela, Quasímodo pouco se aventurava pelos espaços exteriores, limitando-se a uma autoclausura na Catedral. Aos 20 anos, apaixona-se pela cigana e dançarina Esmeralda, que, por sua vez, encanta-se pelo oficial da guarda Phoebus.
Frollo também apaixona-se pela cigana e, louco por ter sido desprezado por ela, entrega-a à justiça. A caminho da forca, Quasímodo tentará salvá-la, levando-a nos braços para a Notre-Dame, que, na condição de igreja, era lugar de asilo.
Após a execução de Esmeralda, Quasímodo, que assiste a cena do alto das torres, joga Frollo no vazio; depois, morre ao lado do corpo de Esmeralda, onde eram depositados os restos dos torturados.
Assim como Frollo, partes da catedral caíram no vazio. Assim como Esmeralda, a Catedral foi consumida pela ignorância. Assim como Quasímodo, choramos a morte da arte e da inspiração e morremos um pouco em meio à mediocridade.

Publicado originalmente em https://z1portal.com.br/quasimodo-chorou/

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