Revista Philomatica

quinta-feira, 11 de abril de 2019

O que é cultura?


Agnès Varda e Nana Caymmi, mulheres e artistas geniais, o que têm em comum? Pouco, é claro, considerando-se que desenvolveram suas obras em esferas diferentes das artes e a quilômetros de distância uma da outra. O fato é que ao longo da semana ambas foram notícia; ambas, ressalto, têm em comum algo que as iguala, são pilares de uma memória que desaparece sob nossos olhos.
Nana, em deliciosa entrevista dada a Folha, conta um pouco de suas aventuras, dispara sua espingarda de dois canos, acerta Gil, Caetano e Chico, chamando-os todos de “chupadores de pau de Lula” e, de quebra, acerta também Belo, o pagodeiro cujo nome é mesmo Pires Vieira. (O porquê de ele ter adotado a alcunha de “Belo” é algo que me atormenta de um jeito, meu Deus; o nome não se ajusta à figura...). Vá lá, de Belo, Nana Caymmi lamenta o fato de as netas ouvirem o tal cantor, lastimando nas entrelinhas uma cultura popular que desaparece, que se esvai, acantonada pela indústria, a cultura de massa que emburrece a massa, fazendo-a a cada dia mais bovina, gado que sequer passará nos projetos do futuro.
Pois é, estamos todos no caminhão desgovernado que desce a ladeira: eu, você, Lindo, quer dizer, Belo, Nana e o blogueiro Chico Barney, que alfinetou Nana, conclamando-a a respeitar o pagodeiro. Barney, o blogueiro, não contente em tratar Belo como um “grande vulto da música brasileira”, detentor de uma “obra poderosa”, comparou-o a Dorival Caymmi. O que dizer ao blogueiro? “Menos, rapaz, menos, para tudo há limites!”
Por outro lado, Nana ombreia Agnès porque – como disse - também é parte de uma memória que se acaba, uma cultura que não mais se encaixa no reducionismo do pensamento cultural contemporâneo, ambas são resquícios de uma cultura que justapõe a tensão entre fazer e ser feito, algo que compreende racionalismo e espontaneidade e de certo modo intervém positivamente na cognição do indivíduo.
Agnès Varda morreu na quinta-feira. Agnès Varda foi uma das pioneiras da revolução cinematográfica francesa dos anos de 1960, cineasta de Cléo de 5 à 7 e Sans toit ni loi. “Eu deveria parar de falar de mim mesma, e aqui estou eu, tenho que me preparar para me despedir", disse Agnès Varda, há um mês no Berlinale, ao anunciar sua aposentadoria artística. Hoje suas palavras ressoam como profecia.
Internacionalmente conhecida, Varda foi uma das raras mulheres cineastas da Nouvelle Vague e construiu uma obra original, pioneira, na fronteira entre o documentário e a ficção e que resultou em trabalhos como Cléo de 5 à 7 (1962), Sans toit ni loi (1985), Les Glaneurs et la Glaneuse (2000), Les Plages d’Agnès (2009) e Visages, villages (2017). Seu último trabalho foi o documentário Varda par Agnès, apresentado no último Festival de Berlin.
Mas quem se importa com Varda? Quem se importa se Nana Caymmi canta Tito Mardi e na sequência vai gravar Tom Jobim, quem se importa? Quem foi Tito Mardi? Quem foi Tom Jobim? A cultura não quer saber. Quem foi Agnès Varda? Quem viu alguma sequência de Sans toit ni loi, filme que deu o Leão de Veneza à cineasta, em 1985?
Varda, Mardi, Jobim e Nana? Quem foi essa troupe esquecida da memória? Pouco importa; o que importa (a notícia mais lida) é a festa da Anitta. Qual é a ideia de cultura? Nós trópicos, Eagleton, é isso: cultura é arrastar o traseiro do asfalto! Mas quem se importa?

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