
Ora,
fato contado, produz-se um descompasso e a voz perde sua origem, morre o autor
e a escrita começa. Em proveito da escrita, restitui-se então o lugar ao
leitor, esse escriptor que
reescreverá livros e livros à sua maneira, preenchendo as entrelinhas.
É
claro que há críticos - Bloom, por exemplo – que acham isso tudo uma tolice. A
despeito da teoria, o império do Autor, essa personagem moderna, segundo
Barthes, ainda é muito poderoso. Não importa aqui se as sociedades modernas o
tenham produzido em proveito de interesses outros, o que importa é que o Autor
acreditou desde sempre que o produto de sua criatividade, ainda que espalhado
pelos quatro cantos, é coisa sua, só sua. Surrupiar vira plágio, alterar, só
com seu consentimento, e, ainda assim, às vezes, as relações azedam entre
autores e os artistas que resolvem balançar o berço da criança cuja paternidade
não fora sua.
Tomemos
alguns exemplos: conta-me S. L., que fora amiga de Hilda Hilst, que, juntas, em
uma noite fria resolveram ir ao teatro Centro de Convivência, em Campinas, assistir
a montagem de A Morte do Patriarca. Casa
lotada, atores e diretor exultantes, afinal, Hilda estava na plateia. Mal
esperavam o final do espetáculo para ouvirem a opinião da escritora e quem sabe
dividir algum dedo de prosa em algum dos bares do Cambuí. Ocorre que nem mesmo haviam
transcorridos vinte minutos do início do o espetáculo, Hilda toma S.L. pelo
braço e, decidida, diz: “Vamos, agora.” Hilda saiu do teatro e a plateia que
sabia de sua presença ali voltou as costas para o palco. Atores e diretores...
prefiro não comentar. O que soube por S.L. é que ela, Hilda, odiara tudo. “Não
foi isso o que escrevi”, concluiu. Porém, Hilda sobreviveu.
Marguerite
Duras, por sua vez, antes mesmo de se tornar cineasta tivera algumas de suas
obras adaptadas: René Clément realizou Un
barrage contre le Pacifique, que Duras considerou “a mais inacreditável
traição”; o mesmo ocorreria com Moderato
Cantabile, adaptado por Peter Brook, que a autora, descontente, disse ter
querido fazer sua própria versão. Já com O
Amante (1984), adaptado por Jean-Jacques Annaud em 1991, e cuja estreia
deu-se em 1992, Duras não gostou nem um pouco, afirmando que a adaptação ideal
do romance seria sua leitura feita por ela mesma. Duras, assim como Hilda,
também sobreviveu.
Boris
Vian, prolífero autor francês que escreveu nada mais nada menos que 10
romances, uns 60 contos, 3 coletâneas de poesia, 3 volumes de crítica e
crônicas de jazz, 10 peças de teatro, 6 libretos de ópera, 30 roteiros, cartas,
panfletos, manifestos e traduções, também teve lá seus problemas com os
adaptadores. Em 1946, Vian havia escrito J’irai
cracher sur vos tombes, cujos direitos de adaptação haviam disso comprados
pela sociedade SIPRO.
O
próprio Vian se encarregara de adaptar seu romance para o cinema; ao entregar
sua adaptação aos produtores recebeu um “não compreendemos bem o que o você quis
dizer [...] fomos obrigados a contatar um novo adaptador para este trabalho”.
Na
manhã de 23 de junho de 1959, J’irai
cracher sur vos tombes, filme inspirado em seu romance é projetado no
cinema Le Marbeuf, perto da Champs-Élysées. Vian, que já havia discutido com os
produtores, dissera estar convencido de que a adaptação não era seu estilo e
que expressaria publicamente seu desagrado e, por fim, que não queria seu nome
associado ao filme. Apesar de suas hesitações, Boris fora convencido por amigos
a ir à projeção. Logo nos créditos do início, quando apareceram as palavras “inspirado
no romance de Vernon Sullivan (pseudônimo de Vian), traduzido do americano por
Boris Vian”, este se levanta e grita “Ah, não...”.
Diferente
de Hilst e Duras, Vian não suporta o ultraje e morre de uma fibrilação
ventricular, aos 39 anos, antes mesmo de chegar ao hospital Laennec.
Foto:
Cena de J’irai cracher sur vos tombes,
filme de Michel Gast, 1959.
Publicado originalmente em https://z1portal.com.br/escrever-e-morrer/