Revista Philomatica

sábado, 7 de setembro de 2019

As bruxas do SUS, ou as benzedeiras agentes de saúde pública


Às vezes, lembro-me dos meus tempos de menino. As lembranças, fluxos de memória involuntária, brotam do nada e o nada, é claro, não é nada parecido com a Madeleine do Proust, que descobri tardiamente. Às minhas reminiscências, juntam-se muitos capítulos de histórias ouvidas na infância que se tornaram referências e sustentação, fazendo de mim o que sou hoje. E hoje, adulto, felizmente sou traído pelo tempo que me lembra a todo o instante da sua passagem por meio de uma bobeira ou outra que alguém diz, um aroma, uma música... e quando vejo lá estou de novo vivenciando meus verdes anos. A meninice aflora e a nostalgia invade, por vezes, até mesmo as horas mortas, roubando-me o sono; então, faço-me menino, imaginando a delícia dos dias em que a preocupação da manhã seguinte era juntar os amigos e escolher os jogos e as brincadeiras daquele dia que, findo, parecia sempre ter sido o mais longo dos dias - até mesmo que os meus dias de hoje.

Terminadas as brincadeiras, banho tomado, barriga aquecida com a comida caseira preparada por minha mãe, nas noites agradáveis de primavera e verão, cercava-me de amigos e primos e, juntos, íamos sedentos à sobremesa que não era sorvete nem nada (não tínhamos uma geladeira), mas sim as historietas contadas pelos adultos que recontavam histórias ouvidas há muito ou rememoram suas próprias infâncias, sempre tomados pela saudade de aventuras perdidas na poeira do tempo. Sentávamos todos sob a lua e as estrelas (onde morava não tinha energia elétrica) e ficávamos atentos àquelas narrativas dos tempos de antanho: ouvíamos de tudo, a única regra válida era a de que uma história puxa a outra, e assim, atentos, passávamos horas embevecidos por relatos de pessoas cujas lembranças reduziam-se a nomes. Às vezes, um tio trazia à roda um Sr. Isidoro, que morava no “córgo” (córrego) da Anta... Identificados a personagem e o lugar, a história fluía. Não raro, eram histórias recheadas de elementos fantásticos: uivos não identificados que emergiam das matas, rodamoinhos, ventos inesperados, luzes intensas que apareciam do nada, chuviscos repentinos em noites quentes e secas, vozes assustadoras, imagens diáfanas (quase sempre mulheres, mas havia homens também) que se interpunham nos caminhos. Os caminhos eram sempre em meio às matas, trilhas de difícil acesso; até mesmo porque todos moravam, como dizia minha mãe, nos ermos, em lugares recém desmatados, isto em uma época em que desmatar e matar animais era a regra diária e ninguém se importava com isso. O vizinho do meu Tio João, que matara uma onça no sítio, era visto com respeito pelos outros moradores.

Ah, nessas histórias também era frequente uma personagem que, para nós meninos, à época, era terrível até mesmo imaginar que andasse pelas matas, o diabo. Sim, ele mesmo, o tinhoso, o capiroto, o pé-de-bode, o sete-peles, o renegado, e por aí vai. Ao ouvir seu nome em meio a uma narrativa, levados pelo medo, contorcíamo-nos todos, aproximávamo-nos uns dos outros imaginando que ele pudesse saltar do escuro e consumir-nos todos, meninos e adultos. Desconfio até hoje de que um vizinho azeitava suas histórias só para nos ver amedrontados. Mas isso é outra história; o fato é que ficávamos aterrorizados, porém, dominados por essas narrativas e à espera de seus desenlaces.

Ah, havia histórias fantásticas, como a do “Boi falô”, que data do tempo dos escravos, antiga... Tudo se passou em uma Sexta-feira Santa, quando o administrador da Fazenda Santa Genebra, ali perto de Campinas, pediu a um escravo por nome Toninho, que fosse até o estábulo pegar um boi para realizar seu trabalho do dia. Ali chegando, o escravo se deparou com o boi deitado no chão, tranquilo. Ao tentar pegá-lo à força, o animal, para espanto do homem, disse-lhe: “Hoje não é dia de trabalhar, é dia do Senhor!”. Aterrorizado, o escravo saiu o mais depressa possível dali e foi ao encontro do administrador; este, ao lhe perguntar sobre o boi, ouviu apenas: “O boi falô!”. Hoje, em Barão Geraldo, depois de a história correr de boca em boca, ser requentada e acrescida de pontos e mais pontos, às vésperas da Páscoa, moradores e visitantes se reúnem para comemorar e saborear uma tradicional macarronada em homenagem à lenda do “boi falô”. O porquê da macarronada fica por conta dos pontos, afinal quem conta um conto...

Ah, também havia histórias de bruxas e curandeiras. Estas, parece-me, deixaram os rincões, os lugares ermos, as matas e mudaram-se para os centros urbanos. Há festivais de bruxas, nos quais meninas e mulheres se travestem de bruxas – sempre, é claro, trajando figurinos à la Disney, com uma ou outra customização – e encenam danças em voltas de caldeirões, entoando canções um tanto esdrúxulas, tomando-se por seres especiais que povoam o universo apesar dos ridículos mortais que infestam a Terra mãe. As curandeiras, por sua vez, proliferaram-se por duas razões: o metafisicismo que desde tempos imemoriais conduziu as crenças humanas e a ausência da ciência, digo, um serviço de saúde justo e subvencionado pelo poder público, direito de todo cidadão. Junte-se as duas alternativas e voilà, as curandeiras tornaram-se agora agentes da saúde pública.

Ontem, ao acessar as redes sociais, o que leio? Leio que em algumas cidades do país há algum tempo benzedeiras, rezadeiras, curandeiras e costureiras de rendiduras (dores musculares) foram reconhecidas como agentes de saúde pública. Na prática, é o Estado reconhecendo aquele chazinho e aquela suave surra de ervas em substituição à saúde pública; trocando em miúdos: médicos, hospitais e postos de saúde.

Ao entrar na onda de ONGs que congregam benzedeiras, como a MASA (Movimento Aprendizes da Sabedoria), que cadastrou 161 em Triunfo (PR) e 133 em Rebouças (também PR), o poder público tira seu corpo fora e, para isso, conta com a ignorância de um povo acostumado ao falso conforto da mediocridade. Esta, como dizia Carpeaux, entre os homens é tão profunda quanto o oceano. A representante de uma das OGNs afirma que a iniciativa ajuda a combater o preconceito – e de quebra, é claro, rende alguns caraminguás às ONGs (algo que ela não disse, mas digo eu).

Ora, convenhamos, não se trata de preconceito, mas de pura obtusidade. Ao dispensar uma visita ao médico, o paciente pode, em muitos casos, retardar um tratamento, algo que lhe será fatal mais tarde – e nunca ouvi falar de uma benzedeira que tivesse ressuscitado um morto! No mais, não acredito que alguém que padeça com um câncer, ao levar umas chicotadas de arruda, saia de lá saltitante e curado. Respeito a fé, mas curandeira não substitui médico. Ao ler comentários efusivos com a volta da ancestralidade (que duvido, conheçam) e com hipotético despertar que está acontecendo, lembro-me do povo que tem se recusado a tomar vacinas e penso que até para a ignorância há limites. Digo isso aos meus botões e eles, no silêncio de suas casinhas, parecem concordar. Saravá!



Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/as-bruxas-do-sus-ou-as-benzedeiras-agentes-de-saude-publica/

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