Revista Philomatica

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Patrulhamento cultural e ideológico

Eu venho de lá onde a amizade era leve e sorridente. Eu venho de lá onde os amigos costumavam praticar rituais estranhos e exóticos, tais como se encontrar só para se ver e, de quebra, compartilhar dores e amores; às vezes, porque eram humanos, brigavam e se odiavam, mas logo se abraçavam. Eu venho de um tempo em que as pessoas preferiam acreditar que eram responsáveis por si mesmas e os desentendimentos eram momentâneos; depois das verdades ditas (ou ao menos achávamos que eram verdades, as nossas verdades) e das desculpas aceitas, abraçávamo-nos e cantávamos Andanças. Sim, porque se hoje a saudade é imensa, só o é porque não conseguimos medir tanta areia andada, tanto verso, tanto sonho, tantas luas, festas e serestas... Éramos profanos.
Quer saber? Foi ótimo ter vivido intensamente os anos 80. Pouco importa se foi a “Década Perdida” para os economistas e burocratas, afinal, quem liga pra eles? O fato é que olhando para trás vemos uma década inovadora, plena de tendências culturais e modismos que hoje, convenhamos, seriam rejeitados pelo bom mocismo das patrulhas que regulam o politicamente correto e até mesmo o que você gosta porque acha que gosta e o que você não gosta, mas nem sabe porque não gosta.
A moda New Age, quem não se lembra? Alguém sabe o que é sair para o trabalho usando camiseta verde-limão, calça laranja e tênis vermelhos? A cidade era um festival de cores. Na TV, as manhãs eram animadas pela Rainha dos Baixinhos, Xuxa, em trajes minúsculos, quase nua - e não aparecia sequer uma mãe tresloucada, escoltada pelo Conselho Tutelar, gritando aos ventos e acusando a loira de atiçar a libido dos baixinhos. Aos sábados, Chacrinha cantava Maria Sapatão, sapatão, sapatão,/ De dia é Maria, à noite é João e Olha a cabeleira do Zézé/ Será que ele é/ Será que ele é..
Os anos 80 trouxe o Asdrúbal trouxe o trombone, a Legião Urbana, Cazuza, o Movimento das Diretas Já, Titãs, Paralamas do Sucesso, o primeiro Rock in Rio, o punk, o soul à brasileira, a TV Pirata, Armação Ilimitada, Marina, Gal cantando Vaca Profana... Eita saudosismo!
E hoje, o que sobrou? É certo que o respeito à diversidade é inalienável, mas tudo tem ficado tão chato, mas tão chato que se você ousar afirmar em público que não gosta de jiló é provável que a patrulha em defesa do jiló venha para cima com tudo!
Não deu outra, Lulu Santos aventurou-se a elogiar uma cantora e ao fazê-lo, disse: “Você emagreceu, ficou mais bonita.” Pronto! Tornou-se alvo dos internautas irados (todos certinhos). Lembrei-me dos anos 80 porque foi mais ou menos a essa época que a expressão cunhada pouco antes pelo cineasta Cacá Diegues ganhou as ruas. Foram tempos de patrulhamento inócuo, em que apareceram bizarrices como a passeata contra as guitarras - essa, de 1967 -, que reuniu artistas ciosos em zelar pela pureza da MPB. Hoje, mal podiam imaginar, a MPB jaz deitada eternamente em berço esplêndido, isso se você leitor for magnânimo, caso contrário, pode-se afirmar que ela nem existe mais, sufocada que foi pelo pagode, o funk e todos esses ruídos que incomodam seus ouvidos e o seu sono.
Os tempos são pendulares, mas, curiosamente, tratando-se do patrulhamento,  vivemos situação semelhante aos anos 60 e 70, quando toda arte que não fosse engajada era proscrita, gerando certa polaridade em que o radicalismo emburrecedor inviabilizava o diálogo e dava azo às patrulhas ideológicas; hoje, infelizmente, a arte parece ter sido espezinhada dos dois lados e é a política que define que lado da luta escolher. No meio do tiroteio, aí daquele que tentar criar um atalho entre os dois lados... Hoje, até mesmo a amizade tem sido ferida pelo patrulhamento. Quem não conhece amigos que deixaram de se falar pós eleições 2018?  No âmbito social, dá-se a mesma coisa com as investidas contra as opiniões divergentes, algo nocivo que secciona as minorias, porque para muitos que se arvoram defensores das minorias há minorias e minorias, e algumas minorias são mais minorias que outras minorias.
Lembrei-me agora do Festival de Cinema Pernambucano, em que cineastas retaliação às apresentações de documentários considerados por eles como ligados a valores tradicionais e à esquerda tucana dos anos 1990. À época, uma das signatárias do texto emitido pelos cineastas, Cíntia Domit Bittar, colocou em xeque a legitimidade da seleção, criticou a curadoria e afirmou: “Não censuramos filme nenhum de estar no festival, nem incitamos boicote. Apenas retiramos nossos filmes”. (Não mesmo?!) Em seguida à decisão, a direção do festival decidiu suspender o evento. E como o patrulhamento - e a censura – vira e mexe despertam a memória, lembrei-me de Cacá Diegues, que em 1978 teve seu filme Chuvas de Verão recebido com frieza pelos críticos – o que já havia acontecido com Xica da Silva, seu filme anterior. Após o banho de água fria, Diegues, em entrevista à jornalista Póla Vartuck, publicada no jornal O Estado de São Paulo, denunciou as patrulhas ideológicas, que seriam integradas por jornalistas ligados ao PCB e que não teriam objetivo outro que detratar produtos culturais não alinhados ao politicamente correto defendido por esses grupos formadores de opinião.
A polêmica que se seguiu à entrevista de Diegues resultou em um livro, Patrulhas Ideológicas, de Carlos Alberto M. Pereira e Heloisa Buarque de Hollanda, publicado pela Editora Brasiliense. No livro, Diegues, em nova entrevista, define o modus operandi das patrulhas: “O que existe é um sistema de pressão, abstrato, um sistema de cobrança. É uma tentativa de codificar toda manifestação cultural brasileira. Tudo o que escapa a esta codificação será necessariamente patrulhado.”

Patrulhados ou não, parece-me, Chacrinha e Xuxa saíram ilesos. Já Lulu, ovacionado dia desses por assumir seu amor, ontem, distraído, foi tomado pela sinceridade e deu no que deu.


Publicado originalmente em https://www.z1portal.com.br/patrulhamento-cultural-e-ideologico/

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