Ao ler Roland Barthes par Roland Barthes, me chamou a atenção o enunciado Forgeries; lá, Barthes afirma que para dizer qualquer coisa é necessário simplesmente que haja um paradigma para produzir sentido. Ora, dentre os inúmeros recursos dos quais lançamos mão para forjar um texto, estão as imagens, recorrência próxima da semiologia que, para Barthes consiste no estudo das significações que podem ser atribuídas aos fatos da vida social concebidos como sistemas de significação: imagens, gestos, sons melódicos, elementos rituais, protocolos, sistemas de parentesco, mitos etc.
Pois bem, ontem comemorou-se o aniversário de Brasília. A imprensa mostrou imagens várias: a arquitetura, a natureza, a imensidão do céu de Brasília, além de suas gentes, verdadeiro melting pot cultural, enfim, um evidente esforço para tirar da cidade a pecha de que é uma ilha da fantasia, distante da realidade do país e - me perdoem os brasilienses, um ninho de corruptos. Se afirmasse isso, estaria expressando minha ingratidão, já que a praga da corrupção campeia pelos quatro cantos do país e não é coisa endêmica da capital.
Questão de sinapse, acredito, liguei duas imagens diversas e, só por causas delas, decidi por escrever esse texto. Vamos a elas: ontem, em um noticiário de televisão, foi exibida uma imagem de estudantes em confronto com a polícia em Brasília, quando das manifestações contra aquele senhor, ex-governador e ex-presidiário, que desviou milhões e, ao ser pego, disse que o dinheiro havia sido empregado na compra de panetones. Lembram-se? A imagem era contundente, violenta; policiais a cavalo agredindo estudantes a golpes de cacetes e, os cavalos que, mais idôneos, refugavam. O texto narrado pela jornalista falava em liberdade. Comentava-se o afastamento criado entre os políticos e o povo com a transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília, principalmente durante o regime militar, porém, destacava o fato de o povo ter-se deslocado para o Planalto Central e insistir no clamor por seus direitos e pela sua liberdade. Dado curioso: aqui, do alto de um cavalo, a polícia tentar silenciar a liberdade.
A outra imagem é um foto de Robert Doisneau: Le Cheval Tombé. Na foto, clicada durante a Segunda Guerra, quando Paris estava sob a ocupação alemã, pode-se observar um cavalo caído em uma rua parisiense. Conta-se que ele escorregou no gelo, o que pode ser visto pelos traços brancos no chão. Inúmeras pessoas observam o cavalo, porém, não há qualquer tentativa de ajudá-lo. Ao fundo, um edifício cinza com largas janelas escuras. A vestimenta dos parisienses é também de cor cinza, o que contrasta com a cor do cavalo, de um branco deslumbrante. O cavalo usa cabresto e arreios. Ele evoca um sentimento de isolamento e de sofrimento. A ajuda que ele espera não chega e ele tenta levantar-se só.
Embora tenha sido um clique acidental, muitos veem no cavalo a representação de uma França ocupada, só, paralisada. Os parisienses não agem, não entendem, estão entorpecidos e não compreendem a cena, que parece transmitir todo o sentimento que vivem diante de uma incompreendida ocupação. As duas grandes janelas, acreditem, podem figurar como uma luz ao final do túnel da opressão e da violência, enfim, uma escapatória, um fim para todo o horror que viviam.
Em Brasília as posições estão invertidas: o cavalo em pé e o homem no chão. Interpretar o quê? Infelizmente a liberdade, qual seja o ângulo, ainda padece. Pena que na foto brasiliense não se pode ver janelas. Cabe, aqui, guiar-se pelos dizeres do próprio Doisneau: "« Je m’obstine à arrêter ce temps qui fuit…La plupart de nos contemporains n’ont jamais pensé que tout est provisoire, c’est un sentiment désagréable. Moi, je le pense et j’essaie de transmettre aux autres ce que je crois bon, beau. » Ou seja, aprecie o belo porque tudo o mais é provisório. Creiamos nisso.
Imagens: Le Cheval Tombé, Robert Doisneau, 1942; e, A Polícia Militar do Distrito Federal reprime manifestantes contra o governador Arruda em frente ao Palácio do Buriti (Foto: Roosewelt Pinheiro/Agência Brasil).
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