Revista Philomatica

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Index Librorvm Prohibithorvm

"Há cerca de alguns dias, no pequeno vilarejo de Morro Branco, uma jovem por nome Diná, saiu para encontrar suas amigas quando foi abordada por um rapaz que a estuprou e humilhou-a. Logo após ter cometido tal crime, acompanhado de seu pai, o jovem foi procurar a família da moça para desculpar-se e pedi-la em casamento, dizendo ter se apaixonado por ela. Os irmãos da moça revoltaram-se e impuseram condições para que a união se concretizasse. Em razão do acordo entre as famílias, a polícia sequer foi procurada. Porém, três dias após o pacto firmado, os irmãos da jovem foram armados até a casa do rapaz e mataram todos os homens que ali se encontravam - inclusive meninos, além de saquearem a propriedade e roubarem todos os animais da fazenda. Vingar a violência contra a irmã foi a justificativa que deram por terem cometido os crimes. "

História iguais a essa são normalmente veiculadas nas páginas policiais. Porém, se você, leitor, abrir sua Bíblia, no livro de Gênesis, capítulo 34, ali terá todos os detalhes do relato acima. É certo que o nome da cidade, o tempo e a polícia foram invenções minhas na tentativa de atualizar o texto, mas ainda assim, não deixa de ser um acontecimento sangrento.
Por que essa história? Para mostrar que passados milhares de anos, a tolerância ainda continua artigo raríssimo, malgrado os esforços homéricos de Voltaire. Muitos, acredito, devem achar que a paga foi relativa, portanto, as mortes justificáveis. Questão de pressupostos; cada um é cada um. Não acho desculpável, sequer compreensível. Assim como não acho compreensível que em 2010, século XXI, ainda se condenem livros por esta ou aquela razão.

Ontem, li no jornal O Globo que nos Estados Unidos existe uma tal Associação Americana de Bibliotecas (ALA – American Library Association, http://www.ala.org/) que, entre outras coisas, divulga anualmente uma lista de livros proibidos, a exemplo Index Librorum Prohibithorum (Índice de Livros Probidos). O Index, cujo objetivo inicial era reagir contra o avanço do protestantismo, foi criado em 1559 no Concílio de Trento (1545-1563), quando ficou sob a administração da Inquisição ou Santo Ofício. Esta lista continha os livros ou obras que se opusessem a doutrina da Igreja Católica e deste modo tinha como objetivo prevenir a corrupção dos fiéis. O índice foi atualizado regularmente até a trigésima-segunda edição, em 1948, tendo os livros sido escolhidos pelo Santo Ofício ou pelo Papa. A lista não era simplesmente reativa, os autores eram encorajados a defender os seus trabalhos. Em certos casos eles podiam reeditá-los com omissões, caso pretendessem evitar a interdição. Digamos, um encorajamento da censura prévia.
Em determinados momentos da história obras de cientistas, filósofos, enciclopedistas ou pensadores como Voltaire, Galileu, Maquiavel, Kant, Descartes, Pascal, Espinosa, Rousseau, Hobbes, Locke, Montesquieu, Hume, Diderot, Nicolau Copérnico, Erasmo de Roterdã e escritores e poetas como Sterne, John Milton, Alexandre Dumas (pai e filho), Daniel Defoe, Victor Hugo, Anatole France, Balzac, Flaubert, Sartre e tantos outros fizeram parte da lista que, só em 15.6.1966, foi abolida pelo Papa Paulo VI.

Ironicamente, atendendo a pedido de grupos cristãos que protestam contra temas como bruxaria e histórias sobrenaturais, a ALA incluiu na lista Stephanie Meyer, autora famosa entre os adolescentes, por ter escrito a série de best seller Crespúsculo (J.K. Rowling, autora de Harry Potter também faz parte da lista). Segundo o jornal, o critério para a inclusão de obras na lista é o número de reclamações recebidas por escrito de bibliotecas ou escolas, pedindo a retirada dos livros de seus acervos por problemas de conteúdo. O mal-estar gerado por esses problemas é responsável por indicações de censura que beiram ao ridículo: no ano passado encabeçou a lista o livro And Tango Makes Three, de Peter Parnell e Justin Richardison, que conta a história de dois pinguins machos que adotam um bebê. Este ano, passado a euforia da publicação, o livro caiu para segundo lugar na lista.

Evidente que em tais critérios de censura não se discute o fator qualitativo, já que isso também cabe ao leitor decidir. Contudo, é lamentável que uma congregação de bibliotecários se prestem a papel tão contraditório, qual seja, proteger os livros e não tomar para si o papel de censores, ainda que sob o pretexto de estarem atendendo aos apelos do público, este, diga-se, tomada de extremo puritanismo ou doente. A doença? Transtorno bipolar, pelo simples fato de que também a Bíblia nos traz histórias fantásticas, sobrenaturais, de violência, segregação, intolerância e, no entanto, contínua sendo um dos livros mais lidos do planeta. É certo o argumento de que o Livro Sagrado deve ser lido com os olhos abertos pelo Espírito, contudo, relatos, narrativas, personagens, temas, mitos e epopeias continuam lá e são passíveis de análises, inclusive literárias. Felizmente, os cristãos pudicos americanos ainda não se deram conta disso, senão, seriam bem capazes de clamar por sua censura, a exemplo do que já fizeram com uma réplica do Davi, de Michelangelo, em uma escola americana.
Paródia ou não, a discussão chegou a Springfield, cidade natal dos Simpsons. Correu a notícia de que o Davi, de Michelangelo ia fazer um tour pelos Estados Unidos, de costa à costa. Bem... para ser preciso, Nova York, Springfield e, se houvesse tempo, Chicago, Boston e Los Angeles. Eis o que se passa em Springfield com a chegada de Davi: Marge encarregada de uma cruzada contra a violência na televisão procura suas amigas, Maude e Helen, para um novo protesto. Desta vez contra a abominável nudez do esplêndido renascentista.
Marge - Mm, mas é o Davi de Michelangelo. É uma obra prima!
Helen - (ofegante) É uma sujeira! Essa estátua mostra graficamente partes do corpo humano que, muito embora úteis, são más.
Marge - Mas eu gosto da estátua.
Helen - (de novo ofegante) Eu disse para vocês, meninas, que Marge é tolerante para com a completa nudez frontal! Ora, vamos...

Enquanto o protesto aumenta, Kent Brockman aparece na tela da televisão:

Kent Brockmann - Trata-se de uma obra prima ou apenas de um cara sem calças? Este é o assunto desta noite no programa Smartline...

Marge desiste e resolve ir ao museu para ver Davi com Homero:

Homero: Ai está... O "Dave" do Michelangelo...

De sua parte, Marge preferia que as crianças estivessem também aí para apreciar essa obra de arte em vez de perder tempo na frente da televisão com os desenhos animados do gato e do rato, entre outros. Homero é mais otimista:

Homero: Não vai demorar para que todos os meninos e meninas da escola elementar de Springlield estejam aqui para ver essa coisa.
Marge: Realmente? Por quê?
Homero: Eles estão fazendo força para traze-los! (ele ri)

(Trechos de Swazwelder, Itchy and Scratchy and Marge)

Imagens: Index Librorum prohibitorum; Davi, de Michelangelo e Simpsons.


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