Revista Philomatica

domingo, 11 de abril de 2010

O canto das sereias

O mundo é pop! Ainda que hora ou outra a tradição se insurja contra a pasteurização geral, é comum encontrar epopeias, mitos e ícones da história massificados para o consumo geral. A mídia, é claro, é a que mais contribui para isso. Mas as artes também dão sua contribuição. Quem já não viu a Mona Lisa travestida em matizes mil? Um diferente do outro, porém, todos preservando aquele sorriso enigmático, misterioso e meio matreiro, de alguém prestes a dizer algo tão interessante que, qualquer cristão, ainda que finja indiferença, se põe morto de curiosidade. E Jesus Christ Superstar, o musical de rock de Andrew Lloyd Webber, com texto de Tim Rice, apresentado em 1970!? A história destaca os embates entre Jesus e Judas Iscariotes. Ainda que a ação seguisse mais ou menos os evangelhos, havia uma dinâmica atual e as gírias prevaleciam nas letras das músicas, com alusões irônicas à vida moderna, criando com isso uma ponte entre a política da época e os acontecimentos atuais. O álbum do espetáculo, uma dramatização musical da última semana de vida de Jesus Cristo, foi base para a criação de vários musicais na Broadway e West End e atingiu o primeiro lugar nos mais vendidos da Billboard, em 1971. Ted Neely, o ator que interpretou Jesus Cristo, na versão cinematográfica de 1973, despertou desejos outros - que não exatamente sacros, em uma multidão de fãs.

Semana passada, dei de cara com a Odisseia, de Homero, mais precisamente o Canto XII, o trecho em que Ulisses (Odisseu, em grego) e seus companheiros chegam à Ilha das Sereias. Circe, deusa grega cuja característica principal era a capacidade para a ciência da feitiçaria, não só orienta Ulisses sobre os perigos que teria que enfrentar, como também o ajudou nos preparativos para a partida, ensinando aos seus marinheiros o que deveriam fazer para passar incólumes pela costa da Ilha das Sereias. As sereias eram ninfas marinhas que tinham o poder de enfeitiçar com seu canto todos que o ouvissem, de modo que os infortunados marinheiros sentiam-se irresistivelmente impelidos a se atirar ao mar, onde encontravam a morte. (Em tempo: as sereias da Odisseia tinham asas.)
Circe aconselhou Ulisses a cobrir com cera os ouvidos de seus marinheiros, de modo que não pudessem ouvir o canto, e a amarrar-se a si mesmo no mastro da nau, dando instruções a seus homens para não libertá-lo, fosse o que fosse que ele dissesse ou fizesse, até terem passado pela Ilha das Sereias.

Agora, leitor, me diga você: a popularização das sereias, no Brasil, não pode bem ter começado com a lenda da Iara, a astuta personagem do folclore brasileiro? Na lenda indígena, essa linda habitante dos rios do norte do país não é tão fatalista quanto sua símile helênica e, eventualmente, oferece à vítima a possibilidade de se escapar da morte. Nas pedras das encostas, Iara tinha por passatempo o hábito de atrair os homens com seu belo e irresistível canto. As vítimas costumavam segui-la até o fundo dos rios, de onde nunca mais voltavam. Os poucos que conseguiam voltar acabavam loucos em razão dos encantos da sereia. Neste caso, conta a lenda, somente um ritual realizado por um pajé poderia livrá-los do feitiço. Resumo da ópera: o fato é que cansadas de nadar em águas gregas e mediterrâneas, as sereias deram umas braçadas mais, se embrenharam talvez pelo Amazonas e, giro feito, tempos depois voltaram ao mar, acabaram próximo a um terreiro e misturaram seu canto ao tambores. Quem não se lembra da música Lenda das Sereias? Oguntê, Marabô/Caiala e Sobá/Oloxum, Ynaê/Janaina e Yemanjá/São rainhas do mar/Mar, misterioso mar/Que vem do horizonte/É o berço das sereias/Lendário e fascinante. Confesso: fico curioso com toda essa diversidade, mas ainda me encantam as sereias helenísticas e mitológicas.

Porém, elas, as sereias, nem sempre são tão pops assim. Basta lembrar de que elas entraram como metáfora para a história literária. Maurice Blanchot, em O livro por vir, liga o canto das sereias à narrativa. Assim, a Odisseia - a narrativa, figura como o túmulo de Ulisses, pois na narrativa as sereias perdem seu encantamento, ou seja, seu canto mavioso não mata mais, pois o canto não é mais imediato, mas contado, o que o torna aparentemente inofensivo, enfim, tem-se uma ode transformada em episódio. A narrativa é o relato de alguém que ouviu contar de alguém que ouviu o canto das sereias. Disso, pode-se afirmar que o túmulo de Ulisses é a narrativa, pois o fato de ter-se amarrado é o que possibilita o recontar. Assim, a narrativa é um acontecimento diante da morte, isto é, o recontar a partir de alguém que sobreviveu à morte. O enunciado de Ulisses é excepcional, é uma verdadeira situação de fala, já que é algo que atesta a existência do sujeito que tem uma história incrível para contar. De maneira tortuosa, dentro do contexto da narrativa, o caráter heróico de Ulisses na epopeia é relativizado, pois ele não enfrenta a morte, não luta contra ela sucumbindo-a, porém, através do poder da técnica - ainda nas palavras de Blanchot, ludibria a morte. Daí, que toda narrativa é incompleta, já que aquele que a relata não chega até o final. Amarrado ao mastro da nau, o máximo que Ulisses experimenta é o prazer que traz consigo a maior de todas as dores, que é a vontade de morrer. Não se deixou levar, experimentar o prazer com gozo - morrer de fato ao ouvir o canto das sereias, mas quis morrer e voltar para contar. Por isso fez-se herói, ainda que relativizado.

Para por fim à prosa vale ainda lembrar Kakfa, que imprimiu ao episódio um outro viés. Em seu livro O Silêncio das Sereias, as sereias possuem uma arma ainda mais temível do que seu canto: o silêncio. Bref, histórias que instigam e enriquecem a literatura.
Imagens: Ulysses and the Sirens, de John William Waterhouse (1891), Ulysses and the Sirens, de Herbert Draper (1909) e Ulysses and the Sirens, de Thomas Moran (1900).

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