O e-book matará o livro impresso? Há pouco mais de 150 anos, discutia-se algo muito similar. No Correio Mercantil, em 1859, os leitores puderam acompanhar no artigo O Jornal e o Livro[1], o perspicaz raciocínio de Machado de Assis, que se perguntava: “O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?” Como se pode ver, com as voltas que o mundo dá, hora ou outra os assuntos se repetem e, ainda que atualizados, vêm à baila, obrigando-nos a um olhar anacrônico para melhor entendermos o presente.
À época, Machado estava entusiasmado com as possibilidades que o desenvolvimento do jornal trazia. Para um jovem de 20 anos, habituado ao tímido mercado de livros que mal ensaiava seus primeiros passos – o próprio Machado, anos depois, teria muitos de seus livros impressos na França, o jornal aparecia como um veículo avassalador. Para Machado o jornal era algo dinâmico, inovador e democrático, passível de reproduzir o espírito diário do povo e que, à maneira de um espelho refletia não só os fatos, mas, sobretudo, o talento e as ideias do homem. Essas ideias, segundo Machado, eram as ideias populares, ou seja, uma fração da ideia humana que o livro não comporta.
Ao traçar um paralelo entre o jornal e o livro, argumenta Machado: “O livro não está decerto nestas condições; — há aí alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos em face do jornal. Depois, o espírito humano tem necessidade de discussão, porque a discussão é — movimento. Ora, o livro não se presta a essa necessidade, como o jornal. A discussão pela imprensa-jornal anima-se e toma fogo pela presteza e reprodução diária desta locomoção intelectual. A discussão pelo livro esfria pela morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive pelo fogo. O panfleto não vale um artigo de fundo. Isto posto, o jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas condições do espírito humano”.
O jornal tinha, de fato, em meados do século XIX, um caráter moderno e, dentre inúmeras leituras possíveis, pode-se dizer que o sentimento de modernidade está em parte calcado na ideia de transformação, consequência direta da dinâmica da informação e do mundo atual como um todo. As mudanças radicais experimentadas pela sociedade contemporânea só fizeram acentuar em seu seio a enormidade de conflitos, os quais, desde a antiguidade, sempre foram parte de seus constitutivos. A amplitude de interesses não só reinventou símbolos pré-existentes, como a indumentária, como também fez com que inúmeros outros se proliferassem, tais quais famílias, empresas e marcas que ao longo dos séculos XIX e XX tornaram-se emblemas de sucesso. Outros tantos ainda, como o cinema, acabaram por representá-la senão em sua totalidade, mas pelo menos em parte daquilo que é ou aparenta ser.
Assim, nesse contexto podemos conferir ao jornal um caráter de objeto simbólico, representativo de uma sociedade em um determinado momento histórico e social, entendendo-se, porém, a tradução desse símbolo como o conjunto de muito das informações e relatos dos acontecimentos de um período. Ao menos, a partir dessas informações, torna-se possível fazer um recorte da época, reconstituir um grupo social. O jornal com primazia tornou-se importante elemento da vida social desde o seu desenvolvimento no início do século XIX, e assim, ainda hoje, figura como um dos símbolos indicativos da vida moderna ao responder pelos diferentes interesses que compõem o amálgama social.
Mesmo décadas após sua ocorrência o jornal continuaria suscitando admiração, tanto é que João do Rio, em 1915, aventura-se na ideia de que nada mais acontecera após o descobrimento da América e da expansão do jornal - essas duas grandes utopias iluministas; além de considerá-lo como instituição de efeito salutar para a democracia.[2] Machado, embora discreto, não consegue conter os arroubos próprios da juventude e vaticina: “Sou filho dêste século, em cujas veias ferve o licor da esperança. Minhas tendências, minhas aspirações, são as aspirações e as tendências da mocidade; e a mocidade é fogo, a confiança, o futuro, o progresso”. Ora, isso Machado o afirma pouco depois de anunciar que iria “traçar algumas idéias sôbre uma especialidade, um sintoma do adiantamento moral da humanidade”, sintoma que logo após identifica como sendo o jornal.
Machado, no cotejo entre os dois condutores de conhecimento, se distancia dos limites impostos pelo livro e parte em direção ao universal, conferindo ao jornal característica de elemento planetário e revolucionário capaz de alavancar o progresso e trazer a modernidade. Embora em princípio o autor trate do embate livro-jornal, é explícito seu aproveitamento como arma política e de disseminação de ideias de cunho marcadamente democrático em oposição ao “direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas”.
O desenvolvimento do jornal altera completamente as interligações comunicativas de então, mas, teria Machado previsto o desaparecimento do livro? Não, não chegou a tanto, afinal do livro, embora tenha destacado seu caráter rígido e estreito, já que não tem as características de uma tribuna comum e aberta à família universal, como o jornal, disse: “Creio nos livros e adoro-os.” (Cartas Fluminenses, 5.03.1867). Ainda nesse artigo, Machado diz: “Admitindo o aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo”.
Por isso, leitor, fique tranquilo pois o seu livro de cabeceira continuará, acredito, ainda por muito tempo. Assim como Machado não sou eu nenhum profeta para predizer que os livros eletrônicos, ou e-books, vão substituir os livros de papel, mas se um dia isso ocorrer, espero não estar mais aqui para presenciar. Em geral, sempre há resistência, tem-se medo do novo e dizem os especialistas, isso será um processo gradativo que só terá fim quando se extinguirem as gerações que foram alfabetizadas com o uso de meios impressos, ou seja, daqui a muitas décadas. De qualquer maneira, já se pode encontrar Dom Casmurro em versão e-book (Acho que Machado, antenado como era, ficaria satisfeito!).
Os amantes de livros – como eu, têm argumentos que, acreditam, fortes. Afinal o livro não é só conteúdo, é também a forma, a beleza com que o texto está disposto na página, são as imagens distribuídas entre as linhas, é a capa, o cheiro do papel, da tinta, é a inteligência visível, presente, passível de ser tocada! Também, pode-se dizer que num primeiro momento o livro eletrônico cansa a vista, já que é preciso manter o olhar fixo na tela de um dispositivo eletrônico. Isso é algo realmente considerável, e aqui vale lembrar-se de Bill Gates, que prefere imprimir qualquer documento que tenha mais de quatro páginas, para não ter que ficar lendo na tela do computador. No entanto, com as novas tecnologias (como os displays de cristal líquido), esse problema não será um empecilho para a disseminação dos e-books. Portanto, não teremos que expor nossos olhos a tanto brilho e radiação, o que nos causaria um verdadeiro estresse ocular.
Os e-books não são diferentes em nada de qualquer outro produto: têm vantagens e desvantagens. Vantagens? Há versões que podem ser carregadas no bolso; melhor, dentro desses aparelhinhos você não carrega um só livro, mas uma biblioteca! Algumas marcas vêm até com uma capa de couro e cheiro de livro novo para incentivar os mais conservadores. Outra vantagem é que se o livro que você estiver lendo trouxer uma informação que desconheça, é só pesquisar na rede e pronto, lá está o que procurava! Argumentam ainda que há uma vantagem ecológica, com os livros eletrônicos a tendência é que seja reduzida a necessidade de cortar florestas para produzir papel. Desvantagens? Não sentir a alegria de ver uma estante repleta de livros, diferentes tamanhos e bordas coloridas, a bateria do e-book que pode pifar, sei lá, o aparelhinho que pode ir, na hora mesmo inesperada, para a assistência técnica, vírus... meu Deus! será que também pega vírus?!?!?!
À época, Machado estava entusiasmado com as possibilidades que o desenvolvimento do jornal trazia. Para um jovem de 20 anos, habituado ao tímido mercado de livros que mal ensaiava seus primeiros passos – o próprio Machado, anos depois, teria muitos de seus livros impressos na França, o jornal aparecia como um veículo avassalador. Para Machado o jornal era algo dinâmico, inovador e democrático, passível de reproduzir o espírito diário do povo e que, à maneira de um espelho refletia não só os fatos, mas, sobretudo, o talento e as ideias do homem. Essas ideias, segundo Machado, eram as ideias populares, ou seja, uma fração da ideia humana que o livro não comporta.
Ao traçar um paralelo entre o jornal e o livro, argumenta Machado: “O livro não está decerto nestas condições; — há aí alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos em face do jornal. Depois, o espírito humano tem necessidade de discussão, porque a discussão é — movimento. Ora, o livro não se presta a essa necessidade, como o jornal. A discussão pela imprensa-jornal anima-se e toma fogo pela presteza e reprodução diária desta locomoção intelectual. A discussão pelo livro esfria pela morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive pelo fogo. O panfleto não vale um artigo de fundo. Isto posto, o jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas condições do espírito humano”.
O jornal tinha, de fato, em meados do século XIX, um caráter moderno e, dentre inúmeras leituras possíveis, pode-se dizer que o sentimento de modernidade está em parte calcado na ideia de transformação, consequência direta da dinâmica da informação e do mundo atual como um todo. As mudanças radicais experimentadas pela sociedade contemporânea só fizeram acentuar em seu seio a enormidade de conflitos, os quais, desde a antiguidade, sempre foram parte de seus constitutivos. A amplitude de interesses não só reinventou símbolos pré-existentes, como a indumentária, como também fez com que inúmeros outros se proliferassem, tais quais famílias, empresas e marcas que ao longo dos séculos XIX e XX tornaram-se emblemas de sucesso. Outros tantos ainda, como o cinema, acabaram por representá-la senão em sua totalidade, mas pelo menos em parte daquilo que é ou aparenta ser.
Assim, nesse contexto podemos conferir ao jornal um caráter de objeto simbólico, representativo de uma sociedade em um determinado momento histórico e social, entendendo-se, porém, a tradução desse símbolo como o conjunto de muito das informações e relatos dos acontecimentos de um período. Ao menos, a partir dessas informações, torna-se possível fazer um recorte da época, reconstituir um grupo social. O jornal com primazia tornou-se importante elemento da vida social desde o seu desenvolvimento no início do século XIX, e assim, ainda hoje, figura como um dos símbolos indicativos da vida moderna ao responder pelos diferentes interesses que compõem o amálgama social.
Mesmo décadas após sua ocorrência o jornal continuaria suscitando admiração, tanto é que João do Rio, em 1915, aventura-se na ideia de que nada mais acontecera após o descobrimento da América e da expansão do jornal - essas duas grandes utopias iluministas; além de considerá-lo como instituição de efeito salutar para a democracia.[2] Machado, embora discreto, não consegue conter os arroubos próprios da juventude e vaticina: “Sou filho dêste século, em cujas veias ferve o licor da esperança. Minhas tendências, minhas aspirações, são as aspirações e as tendências da mocidade; e a mocidade é fogo, a confiança, o futuro, o progresso”. Ora, isso Machado o afirma pouco depois de anunciar que iria “traçar algumas idéias sôbre uma especialidade, um sintoma do adiantamento moral da humanidade”, sintoma que logo após identifica como sendo o jornal.
Machado, no cotejo entre os dois condutores de conhecimento, se distancia dos limites impostos pelo livro e parte em direção ao universal, conferindo ao jornal característica de elemento planetário e revolucionário capaz de alavancar o progresso e trazer a modernidade. Embora em princípio o autor trate do embate livro-jornal, é explícito seu aproveitamento como arma política e de disseminação de ideias de cunho marcadamente democrático em oposição ao “direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas”.
O desenvolvimento do jornal altera completamente as interligações comunicativas de então, mas, teria Machado previsto o desaparecimento do livro? Não, não chegou a tanto, afinal do livro, embora tenha destacado seu caráter rígido e estreito, já que não tem as características de uma tribuna comum e aberta à família universal, como o jornal, disse: “Creio nos livros e adoro-os.” (Cartas Fluminenses, 5.03.1867). Ainda nesse artigo, Machado diz: “Admitindo o aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo”.
Por isso, leitor, fique tranquilo pois o seu livro de cabeceira continuará, acredito, ainda por muito tempo. Assim como Machado não sou eu nenhum profeta para predizer que os livros eletrônicos, ou e-books, vão substituir os livros de papel, mas se um dia isso ocorrer, espero não estar mais aqui para presenciar. Em geral, sempre há resistência, tem-se medo do novo e dizem os especialistas, isso será um processo gradativo que só terá fim quando se extinguirem as gerações que foram alfabetizadas com o uso de meios impressos, ou seja, daqui a muitas décadas. De qualquer maneira, já se pode encontrar Dom Casmurro em versão e-book (Acho que Machado, antenado como era, ficaria satisfeito!).
Os amantes de livros – como eu, têm argumentos que, acreditam, fortes. Afinal o livro não é só conteúdo, é também a forma, a beleza com que o texto está disposto na página, são as imagens distribuídas entre as linhas, é a capa, o cheiro do papel, da tinta, é a inteligência visível, presente, passível de ser tocada! Também, pode-se dizer que num primeiro momento o livro eletrônico cansa a vista, já que é preciso manter o olhar fixo na tela de um dispositivo eletrônico. Isso é algo realmente considerável, e aqui vale lembrar-se de Bill Gates, que prefere imprimir qualquer documento que tenha mais de quatro páginas, para não ter que ficar lendo na tela do computador. No entanto, com as novas tecnologias (como os displays de cristal líquido), esse problema não será um empecilho para a disseminação dos e-books. Portanto, não teremos que expor nossos olhos a tanto brilho e radiação, o que nos causaria um verdadeiro estresse ocular.
Os e-books não são diferentes em nada de qualquer outro produto: têm vantagens e desvantagens. Vantagens? Há versões que podem ser carregadas no bolso; melhor, dentro desses aparelhinhos você não carrega um só livro, mas uma biblioteca! Algumas marcas vêm até com uma capa de couro e cheiro de livro novo para incentivar os mais conservadores. Outra vantagem é que se o livro que você estiver lendo trouxer uma informação que desconheça, é só pesquisar na rede e pronto, lá está o que procurava! Argumentam ainda que há uma vantagem ecológica, com os livros eletrônicos a tendência é que seja reduzida a necessidade de cortar florestas para produzir papel. Desvantagens? Não sentir a alegria de ver uma estante repleta de livros, diferentes tamanhos e bordas coloridas, a bateria do e-book que pode pifar, sei lá, o aparelhinho que pode ir, na hora mesmo inesperada, para a assistência técnica, vírus... meu Deus! será que também pega vírus?!?!?!
Enfim, há muito ainda o que se discutir, principalmente no que se refere à difusão que, como todos sabem, implicará em repensar os direitos autorais. Mas isso é prosa para uma outra hora!
[1] ASSIS, Machado de. O Jornal e o Livro. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1971. p. 943-948. Artigo publicado originalmente no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12/01/1859.
[2] ANTELO, Raúl. João do Rio - Salomé. In A Crônica – O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992, p. 153.
Imagens: Página incicial do site do MEC- Machado de Assis Obra Completa; e-book.
Creio que sim estimula muito ter um Ipad mas creio que os livros que vem de gerações não possam morrer por causa de um aparelho eletrônico adoraria ter um mas não trocaria os livros impressos por nada.
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