Revista Philomatica

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Chateaubriand, os sinos e o mau humor

Em um capítulo de Le Génie du christianisme que trata da submissão do Paraguai, Chateaubriand nos conta como os jesuítas tiravam proveito da sensibilidade dos selvagens à musica para convertê-los. Acompanhados de alguns neófitos - não coloco aqui catecúmenos porque duvido que alguém continuaria a deslizar os olhos linhas abaixo -, os missionários a bordo de suas pirogas subiam pelos rios entoando cânticos. Os neófitos, então, cantavam para o ares à maneira dos pássaros que, privados da liberdade, são usados como isca e cantam para atrair outros pássaros selvagens - e livres. Os guaranis, escondidos entre os arbustos da margem, jogavam-se na água e seguiam a barcaça encantada. Pura magia e a força pagã da música a serviço da igreja.
Acontece que o encantamento não ocorria somente entre os selvagens. Os cristãos dos tempos anteriores à Revolução também eram sensíveis a esse tipo de sedução. O capítulo dos sinos, que abre a quarta parte do Génie, mostra como a vida cotidiana de outrora era ritmada, de modo quase mágico, pelo apelo dos sinos das igrejas. Nele há inúmeros exemplos de como os sinos ligam uma comunidade ao seu espaço e como suas badaladas pontuam sua temporalidade e ritmam seus acontecimentos: os dobres fúnebres, os carilhões convocando paras as festas, os sinos de alarme ou encarregados de transmitir uma mensagem moral aos homens, convocando-os a olhar ao próximo e a Deus, enfim, uma forma de comunicação que recolhia afetos e sugeria condutas.
Este capítulo de Chateaubriand vem dos Natchez, segundo informa uma carta de 19.10.1799, escrita no momento em que o autor extrai do livro indígena as passagens que farão parte de sua apologia cristã. René, relato inicialmente inserido nos Natchez, tornou-se referência no Génie, contendo um parágrafo dedicado aos sinos, uma história misturada de magia religiosa e felicidade nostálgica: "Les dimanches et les jours de fêtes, j'ai souvent entendu, dans le grand bois, à travers les arbres, les sons de la cloche lointaine qui appelait au temple l'homme des champs. Appuyé contre le tronc d'un ormeau, j'écoutais en silence le pieux murmure. Chaque frémissement de l'airain portait à mon âme naïve l'innocence des moeurs champêtres, le calme de la solitude, le charme de la religion, et la délectable mélancolie des souvenirs de ma première enfance. [...] Tout se trouve dans les rêveries enchantées où nous plonge le bruit de la cloche natale..."[1]
Machado de Assis, em crônica de 22.9.1872, ao recontar as notícias da semana relata que em Porto Alegre havia grandes queixas contra as badaladas por ocasião das cerimônias fúnebres, indício de que o romantismo de Chateaubriand já perdia força entre o populacho, uma vez que até entre os fluminenses os toques fúnebres no sul soavam algo exótico. O cronista, nostálgico, relembra 1854, à época em que as badaladas fúnebres foram extintas na Corte e um folhetinista do Jornal do Comércio publicara algumas belas linhas pedindo a vinda de algum Chateaubriand. Machado, desencantado, conclui: "Não é preciso dizer que o Chateaubriand não veio." O autor francês e seus sinos são lembranças recorrentes nas crônicas machadianas, prova do intenso exercício de memória literária do cronista.
O porquê dos sinos? Simplesmente porque vieram à tona ao longo da semana. Em Piracicaba, interior de São Paulo, um aposentado que - não vou citar o nome em protesto a favor dos sinos - acordava às cinco da manhã com enxaqueca, revoltou-se contra os sinos. Segundo ele, não precisava levantar tão cedo, mas os sinos do Mosteiro das Carmelitas o obrigavam a isso. O que fez o ilustríssimo senhor? Entrou com uma ação na justiça contra o Mosteiro e calou os sinos. Em meio a todo esse imbróglio há algo que escapou à impressa e me chamou a atenção: a razão da enxaqueca. Afinal, não poderiam ser os sinos, uma vez que começavam a badalar às cinco, justamente quando o cristão - se é que professa o credo, era expulso dos sonhos.
Como em toda polêmica, os contrários ganham voz de ambos os lados: as carmelitas acenam com a tradição, que para muitos é garantia de boa música, e os incomodados agitam laudos, provando que as badaladas atingem 57 decibéis, portanto, são consideradas poluição sonora. Divergência de vilarejo, naturalmente, pois se a regra fosse nacional e valesse nos grandes centros, eu entraria, agora, com ação para que se proibisse o trânsito de ônibus e motos na Nove de Julho. Os fogos em dia de jogos, arrrrhhhhhh!!!!, nem se fala! Final da história? Mais ou menos: o fato é que o juiz da cidade reconsiderou o caso e as freiras tiveram que se adaptar a esses novos tempos em que já não existem mais aposentados carolas. Agora, as badaladas devem soar a partir das sete da manhã. As freiras que antes tocavam os sinos dez vezes ao dia, agora só poderão fazê-lo no dia 30, Dia do Jubileu, quando sugiro que o dito aposentado mantenha estoque razoável de analgésicos.
Caso semelhante ocorreu em Santos Dumont, Minas Gerais. Lá, o morador diz que o sino é muito irritante. Como toda moeda tem dois lados, outros acham que ele é que é muito irritante. Até aí, nada demais, são opiniões e, como dizia Pascal, vérité au deçà des Pyrénées, erreur au delà! Porém, o que agrava a questão em Santos Dumont é a origem do povoado, sesmaria ligada à capela filial da matriz do Engenho do Mato, município de Barbacena. A situação sine qua non para que o povoado pudesse se desenvolver foi a provisão de 27.2.1778, que autorizou a remoção da capela de São Miguel e Almas do sítio de João Gomes para o de dona Clara Maria de Jesus. Em 27.6.1827, a capela de João Gomes foi restaurada e o povoado começou a crescer; em 31.12.1867, foi elevada à categoria de paróquia e paro por aqui, porque minha intenção fora mostrar que o tal cidadão não só é irritante, mas desconhe o berço em que foi badalado, digo, embalado.
Parece-me que aos sinos, hoje, foi reservado apenas São João del-Rei. Lá, são tradição e exatamente por isso a cidade recebeu a alcunha de Terra onde os sinos falam, já que é a única no Brasil onde os sinos ainda podem ser ouvidos de dia e à noite, com grande variedade de toques. Muitos desses toques tiveram sua origem em Portugal e foram trazidos pelos colonos. Conta-se que em 1740 foi trazido um toque do vaticano, criado pelo Papa Bento XIV e colocado em vigor pelo Bispo de Mariana, em 1757. O toque que relembra a morte do Senhor ainda é executado nos dias de hoje. Muitos outros toques foram criados pelos próprios sineiros, uma tradição passada de pai para filho. E isso só existe porque em São João del-Rei os problemas de enxaqueca e estresse não atingem as alturas - dos sinos.
É certo que em tempos de celulares e torpedos, a linguagem dos sinos soa obsoleta e, no caso das carmelitas e de Santos Dumont, não soa. Para por fim à prosa, foi o mau humor que calou os sinos.

[1]René in Oeuvres Illustrées de Chateaubriand. Paris: Hippolyte Bolsgard, Éditeur, 1852, p. 2.
Para saber mais:
1. Sobre Santos Dumont acesse: http://www.ferias.tur.br/informacoes/3813/santos-dumont-mg.html;
2. Sobre os dinos de são João del-Rei acesse: http://www.sjdr.com.br/historia/igrejas_monumentos/sinos/indice.html

Imagens: 1. Sino do Château de Caumale; 2. Mosteiro das Carmelitas, em Piracicaba; 3. François-René de Chateaubriand.


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