Revista Philomatica

quinta-feira, 28 de abril de 2011

11 de setembro de 2301: história ou crônica?

Como contar o que está à volta? Como agenciar as palavras e transmitir a fisionomia da vida atual àqueles de amanhã? É certo que nem tudo o que vivemos passará à história. O 11 de setembro de 2001 passou à história e com ele uma enormidade de teorias conspiratórias; grande parte, porém, pura fabulação.
Mas, e hoje, 11 de setembro de 2301, ao correr os olhos pelas linhas deixadas por um pequeno comerciante que estava numa esquina próxima, quando o primeiro dos aviões chocou-se com uma das torres, como devo referir-me a ele? Historiador? Seu relato é minucioso: traz informações e dados oficiais que posso comprovar em qualquer biblioteca virtual e até mesmo nos arquivos referentes à Terra, depositados nas colônias de Marte.
Ou trata-se de um cronista? Afinal, além de migalhas do oficial, o relato do meu singelo comerciante tem vida e traz um pouco do ar empoeirado do dia. Ali, descubro como milagrosamente conseguiu escapar à tragédia, acompanho seu périplo pela cidade e me surpreendo com sua habilidade de narrador. Observo como descreve a incredulidade de seus contemporâneos, seguida pelo medo crescente. Pressinto o terror face à constatação de que a vida não poupa nada e ninguém. Desço os olhos pelas linhas, noto a sinuosidade nada comum das frases denunciando o gesto trêmulo do instante da escrita que perpassa pelas letras - parece-me que redigiu seu testemunho em meio à catástrofe -, quando, misturado à descrição do desespero das pessoas, um fato singular, miúdo, ínfimo, me chama a atenção: meu relator observou uma revoada de pássaros, notou que acabavam de banhar-se no pequeno lago da praça onde estava e comparou a fadiga humana à paz das aves.
Leio mais algumas linhas e constato que meu narrador é arguto observador: fala das árvores que instantaneamente perderam o verde em razão do pó que se espalhou pelos arredores, do barulho, das buzinas, de gritos lancinantes, choro, pessoas desorientadas, uma mãe que arrasta a criança feito um pacote procurando ganhar distância, às pressas... um cão, que perdido no redemoinho da confusão, move a cabeça tranquilamente para a direita e para a esquerda. Meu narrador vai mais além e conjectura com o cão que, capcioso, lembra-se do pregador e diz: vanitas vanitatum, et ominia vanitas.
Considero a sensibilidade do meu narrador e pergunto: trata-se de um historiador ou de um cronista? Longe, ouço o miado de um gato. Logo depois, sinto o peso e o caminhar sobre meu corpo. Adormecido ainda vejo planetas, constelações, estrelas... meus olhos ardem tal a luminosidade de uma nebulosa... Acordo!
Constato que minha intenção era falar sobre os chroniqueurs e historiens medievais, mais precisamente sobre algo que lera a respeito de Grégoire de Tours, chroniqueur medieval e, num átimo, viajei três séculos adiante, sentido contrário!
Sem pretensão de achar a justa resposta porque, afinal, o cansaço teima em bater à porta, lembra-me de ter lido que Heródoto, considerado o primeiro historiador, ao justificar a escritura de seu livro História, disse que ele era o relato de sua busca para impedir que o passado dos homens não fosse esquecido com o tempo e , assim, evitar que conquistas admiráveis​​, tanto do lado dos gregos quanto dos bárbaros não se perdessem na poeira dos tempos e, o mais importante, contar a causa da guerra a que eles se entregaram.
Muitos comparam o trabalho do historiador ao do jornalista de investigação. Mas, isso é para os teóricos na matéria. Por hora, lembrei-me de assuntos que li na imprensa nos últimos dias e, confesso, fariam a alma de Heródoto cair ao chão: em Itamaracá, no Pernambuco, mãe mata o filho por engano com facada no coração - o que, nas mãos de Ésquilo, resultaria numa boa tragédia; um estudo divulgado na revista Current Biology afirma que pessoas com inclinações políticas liberais têm cérebros estruturalmente diferentes dos conservadores; cientistas tchecos encontraram o que acreditam ser o esqueleto de um homem pré-histórico que viveu entre 4.500 e 5.000 anos atrás e - detalhe, afirmam que o dito-cujo era homossexual ou transexual... um caso de precisão cirúrgica surpreendente, enfim, de fazer inveja aos nossos olhos mal treinados que, não raro, trocam gato por lebre.
E la nave va! O Grégoire de Tours que espere!


Imagens: 1. La Bataille de Crécy, em 1346, Illuminure; 2. Nebulosa Solagrafix. Todas disponíveis no Google Images.


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