Revista Philomatica

quarta-feira, 10 de maio de 2017

O homem é o lobo do homem

Homo homini lupus est. A expressão vem de longe; apareceu pela primeira vez na comédia Asinaria (c. 195 a.C.), de Plauto. Ao longo da circulação das ideias foi retomada por Plínio, o Velho, Erasmo, Bacon, Schopenhauer, Montaigne, Hobbes e mais uma porção de homens - e lobos.
Há pouco, li um artigo sobre a violência entre os primatas. No mundo animal, os suricatos ganham em disparada. Nada afeitos à competição, sacrificam os recém-nascidos. Contudo, na vida adulta, sequer os suricatos superam os humanos - assim chamados porque são pretensamente dotados de razão -, cujos espécimes matam sem qualquer motivo aparente. Eis, em parte, o significado da expressão.
A compreensão total, no mais das vezes, vem do fato de o homo sapiens não se contentar com uma mortezinha e pronto acabou. É preciso requintes de crueldade e submissão, enfim, apreciar a espinha dorsal do adversário curvar-se ao chão, humilhá-lo, destruí-lo em vida, fazê-lo rastejar-se, vê-lo mendigar o pão de cada dia - e só. A morte é a cereja do bolo. Alteridade, tolerância, respeito e tantos outros atributos fazem parte de seu discurso diário. Nas vezes em que se pretende amigo do homem, saca sua cartilha de humanidades e clama pela razão. Mas isso é discurso, na prática, bem a prática...
Mas vá lá, a memória é fraca e a cartilha é logo deixada de lado; os que estão à sua volta tornam-se invisíveis, acha-se o escolhido, e, quando acredita-se desrespeitado, lança mão da famosa carteirada: Você sabe com quem está falando? Se brasileiro, julgando-se especial, recorre ao famoso jeitinho, fazendo valer o dito do velho cronista de que a exceção só é odiosa para os outros; em si mesmo é necessária. Tratando-se de política, democracia é quando ele manda e os outros obedecem; dando-se o contrário, é ditadura. E la nave va!
Ave Schopenhauer! Vê-se leitor, que hoje estou para generalizações. Quando isso ocorre, sabe-se, lá vem verborreia... Voltando aos lobos, a razão pela qual me veio à memória o aforismo de Plauto nem foi a individualidade extremada de nossos dias e o fato de que nos tornarmos o maior dos predadores da natureza, mas a saga do lobo, o canis lupus.
E não é que antes de ser odiado pelos homens, o pobre do lobo era objeto de adoração? Buffon, já contaminado, referindo-se ao animal, disse: “Desagradável em tudo, estatura baixa, aspecto selvagem, voz assustadora, odor insuportável, natureza perversa, modos ferozes, ele é odioso, prejudicial enquanto vivo, inútil após sua morte.” Misto de repulsa e atração, este canidae percorreu o folclore, histórias e lendas; ainda hoje, atrai e assusta.
O fato é que bem antes de assustar as criancinhas nas fábulas de La Fontaine ou Charles Perrault, o lobo era objeto de admiração por parte do homem. Etnozoologistas afirmam que nos locais em que viveram os lobos, havia grupos de caçadores para os quais ele era um modelo absoluto; a ele creditavam a fundação de linhagens reais e de chefes e até mesmo a fertilidade. Nessas sociedades que viviam da guerra e da caça, o lobo era muito bem-vindo, o modelo a imitar.
Diz-se, contudo, que o homem sempre odiou o lobo porque se parece muito com ele. Talvez, por isso, Plauto, ao demorar-se nas semelhanças, viu que a mesma astúcia e força empregada pelo lobo no exercício da caça, o homem aplica para subjugar seu semelhante. Quando se admira alguém, o que fazer? Imitá-lo e perpetuá-lo como exemplo a seguir. Disso, por exemplo, as inúmeras estelas com imagens de lobos encontradas por historiadores e arqueólogos em escavações, a lenda de Rômulo e Rêmulo, alimentados por uma loba e così via.
Como o lobo tornou-se um animal diabólico? A religião! Deixo a palavra com a etnozoóloga Genéviève Carbone: “Descobrimos uma nova religião inteiramente diferente que diz que há um Deus sobre Terra, que ele está ao lado do cordeiro, da luz, e que ele vai banir o inverno, a morte e o frio. O problema é que o lobo está do lado do inverno, da morte e do frio e é ele quem vem para comer os cordeiros quando esquecem de vigiá-los. Para continuar a integrar um lobo, que é um dos elementos mais importantes do folclore ocidental com o urso, é preciso encontrar uma razão de ser, e esta é o diabo. Assim, acomodam o lobo do lado da noite e da feitiçaria.” E que venham os lobisomens!
Hoje, o dito de Plauto e as historietas modernizaram-se: para mim, Chamfort é o que mais se aproxima do italiano ao afirmar que a sociedade não é outra coisa que um grupo de que uma parte devora a outra; por sua vez, o lobo acomoda-se perfeitamente à figura do homem que oprime e subjuga a mulher - e que Deus proteja vovó e a Chapeuzinho! -, ou, numa exegese marxista, ao capitalista bem sucedido que, também opressor, explora o proletariado, de modo que tudo fica a gosto do freguês, até mesmo porque já não há mais lobos que façam mingau de criancinhas e as exéquias, assunto que tomou a semana, encheu os picuás! 

 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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