“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer.” O incipit, leitor, extraí-o de Por que ler os
clássicos, de Italo Calvino, e é uma das quatorze razões apresentadas pelo
autor para se ler aqueles livros sobre os quais sempre ouvimos falar, mas
jamais nos permitimos uma leitura integral. Na maioria das vezes, resenhas,
entrechos comentados, filmes e séries de TV foram os meios pelos quais tivemos
algum contato com tais obras.
Em todos esses casos o texto foi
modificado por leituras anteriores, muitas vezes com o objetivo de sustentar
argumentos externos à obra. É certo que o “eu” que se aproxima do texto já é uma
pluralidade de outros textos, mas, às vezes, somos levados para bem longe do
pensamento do autor, de modo a nos extraviarmos do espírito da obra.
E, parece-me, foi o que aconteceu
semana passada com 1984, de George Orwell, quando se pretendeu
explicar o neologismo criado pela equipe do doidivanas e arrogante (perdoem-me,
os adjetivos são necessários) presidente americano. Trata-se, em novilíngua, do
termo “fatos alternativos”. A expressão, classificada por especialistas como
orwelliana, dá-se em razão de o fato em si não ter realidade objetiva. Ou seja,
nada muito diferente do que os diferentes Miniver (Ministério da Verdade) de
nossos últimos governos já não tenham feito, sob verniz democrático, é claro,
incensando liberdades, mas, de fato, acreditando piamente que a Ignorância
é força (sempre para o Grande Irmão, é claro!).
Contextualizando: após o uso da
expressão pelos assessores de Trump, as vendas do chamado romance distópico de
George Orwell disparou. À informação que se publicou aqui no Brasil - eco da
que viera à luz nos jornais americanos e europeus do dia anterior -, em terras
tupiniquins, acresceu-se opinião, de modo a propalar ainda mais a guerra entre
os Azeredos e os Benevides, localizando a distopia entre as diferentes
correntes de pensamento da politicalha. Incautos, muitos internautas
deixaram-se guiar pela animosidade, esquecendo-se da fala da velha: “Calma, tem
bosta prá todos!”, tal a polarização vista nas redes sociais, onde o ódio se
alastra.
Mas voltemos a 1984, que
você, leitor, se não leu, deve ler! Publicado em 1949, a obra retrata o
quotidiano de um regime político totalitário de modelo comunista. Na época, a
palavra democracia não era ainda um arcaísmo tão relativizado e ambíguo a ponto
de se aplicar à ditaduras, portanto, não oferecia confusão ao leitor, que sabia
dar nome aos bois. O romance mostra como uma sociedade oligárquica reprime
qualquer um que se opuser a ela e, de forma magistral, como um regime
coletivista-socialista intenta contra a vida dos cidadãos, invadindo os direitos
do indivíduo.
1984 é de fato uma metáfora sobre o
poder e a atuação de regimes comunistas e, por extensão, de alguns ditos
socialistas e/ou capitalistas. Orwell, que foi um dos primeiros simpatizantes
ocidentais da esquerda, também foi um dos primeiros a se dar conta de para onde
o estalinismo caminhava. Na obra orwelliana, escrita em regime de urgência,
haja vista sua luta contra a tuberculose que o levaria à morte, o Grande
Irmão é ninguém menos que Stalin e seu arqui-inimigo Goldstein, não é
outro senão Trotsky. Hoje, a lista de nomes traria certa dificuldade ao leitor.
Já nos primeiros parágrafos de 1984 o
leitor tem a sensação de que partes foram extraídas de notícias recentes; e nem
é preciso deitar os olhos para além de nossas fronteiras e vislumbrar um
vizinho qualquer que sociabiliza a fome e a miséria em proveito de princípios
ideológicos. Não que se não deva tê-los, mas, bem alimentados, cérebros
funcionam melhor e, parece-me, não é esse o desejo de todo Grande Irmão.
Em nossos dias, dividimos os cidadãos
em duas classes: os ideocriminosos, que contestam a imprensa
oficial e o partido, e os entusiastas, tão seletivos quanto os
primeiros, mas tão entorpecidos quanto foram os seguidos de Jim Jones.
Orwell, ilustra de forma genial o
comportamento dos cidadãos durante os Dois Minutos de ódio (hoje
o tempo foi distendido; dispomos de redes sociais!): “O horrível dos Dois
Minutos de ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era
impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser
preciso fingir. [o ódio] Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente
elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desejo de matar, de
torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo contra a
sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. E no entanto, a fúria que se
sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a
outro como a chama de um maçarico.”
Eis porque 1984 não
só é um clássico que ainda não terminou o que tinha a dizer, mas
também um cânone, sobretudo porque é um daqueles livros que nos trazem uma
estranheza que jamais assimilamos inteiramente; seja porque apresenta um tipo
de originalidade que ou não pode ser assimilada, seja porque nos assimila de
tal modo que deixamos de vê-la como estranha - com os devidos créditos a Bloom
-, e a despeito da Escola do Ressentimento.
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