Revista Philomatica

terça-feira, 2 de maio de 2017

1984: um cânone?


“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” O incipit, leitor, extraí-o de Por que ler os clássicos, de Italo Calvino, e é uma das quatorze razões apresentadas pelo autor para se ler aqueles livros sobre os quais sempre ouvimos falar, mas jamais nos permitimos uma leitura integral. Na maioria das vezes, resenhas, entrechos comentados, filmes e séries de TV foram os meios pelos quais tivemos algum contato com tais obras.
Em todos esses casos o texto foi modificado por leituras anteriores, muitas vezes com o objetivo de sustentar argumentos externos à obra. É certo que o “eu” que se aproxima do texto já é uma pluralidade de outros textos, mas, às vezes, somos levados para bem longe do pensamento do autor, de modo a nos extraviarmos do espírito da obra.  
E, parece-me, foi o que aconteceu semana passada com 1984, de George Orwell, quando se pretendeu explicar o neologismo criado pela equipe do doidivanas e arrogante (perdoem-me, os adjetivos são necessários) presidente americano. Trata-se, em novilíngua, do termo “fatos alternativos”. A expressão, classificada por especialistas como orwelliana, dá-se em razão de o fato em si não ter realidade objetiva. Ou seja, nada muito diferente do que os diferentes Miniver (Ministério da Verdade) de nossos últimos governos já não tenham feito, sob verniz democrático, é claro, incensando liberdades, mas, de fato, acreditando piamente que a Ignorância é força (sempre para o Grande Irmão, é claro!).
Contextualizando: após o uso da expressão pelos assessores de Trump, as vendas do chamado romance distópico de George Orwell disparou. À informação que se publicou aqui no Brasil - eco da que viera à luz nos jornais americanos e europeus do dia anterior -, em terras tupiniquins, acresceu-se opinião, de modo a propalar ainda mais a guerra entre os Azeredos e os Benevides, localizando a distopia entre as diferentes correntes de pensamento da politicalha. Incautos, muitos internautas deixaram-se guiar pela animosidade, esquecendo-se da fala da velha: “Calma, tem bosta prá todos!”, tal a polarização vista nas redes sociais, onde o ódio se alastra.
Mas voltemos a 1984, que você, leitor, se não leu, deve ler! Publicado em 1949, a obra retrata o quotidiano de um regime político totalitário de modelo comunista. Na época, a palavra democracia não era ainda um arcaísmo tão relativizado e ambíguo a ponto de se aplicar à ditaduras, portanto, não oferecia confusão ao leitor, que sabia dar nome aos bois. O romance mostra como uma sociedade oligárquica reprime qualquer um que se opuser a ela e, de forma magistral, como um regime coletivista-socialista intenta contra a vida dos cidadãos, invadindo os direitos do indivíduo.
1984 é de fato uma metáfora sobre o poder e a atuação de regimes comunistas e, por extensão, de alguns ditos socialistas e/ou capitalistas. Orwell, que foi um dos primeiros simpatizantes ocidentais da esquerda, também foi um dos primeiros a se dar conta de para onde o estalinismo caminhava. Na obra orwelliana, escrita em regime de urgência, haja vista sua luta contra a tuberculose que o levaria à morte, o Grande Irmão é ninguém menos que Stalin e seu arqui-inimigo Goldstein, não é outro senão Trotsky. Hoje, a lista de nomes traria certa dificuldade ao leitor.
Já nos primeiros parágrafos de 1984 o leitor tem a sensação de que partes foram extraídas de notícias recentes; e nem é preciso deitar os olhos para além de nossas fronteiras e vislumbrar um vizinho qualquer que sociabiliza a fome e a miséria em proveito de princípios ideológicos. Não que se não deva tê-los, mas, bem alimentados, cérebros funcionam melhor e, parece-me, não é esse o desejo de todo Grande Irmão.
Em nossos dias, dividimos os cidadãos em duas classes: os ideocriminosos, que contestam a imprensa oficial e o partido, e os entusiastas, tão seletivos quanto os primeiros, mas tão entorpecidos quanto foram os seguidos de Jim Jones.
Orwell, ilustra de forma genial o comportamento dos cidadãos durante os Dois Minutos de ódio (hoje o tempo foi distendido; dispomos de redes sociais!): “O horrível dos Dois Minutos de ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. [o ódio] Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. E no entanto, a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama de um maçarico.” 
Eis porque 1984 não só é um clássico que ainda não terminou o que tinha a dizer, mas também um cânone, sobretudo porque é um daqueles livros que nos trazem uma estranheza que jamais assimilamos inteiramente; seja porque apresenta um tipo de originalidade que ou não pode ser assimilada, seja porque nos assimila de tal modo que deixamos de vê-la como estranha - com os devidos créditos a Bloom -, e a despeito da Escola do Ressentimento.



 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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