Revista Philomatica

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Pop-mortem: Antonio Candido

O existencialismo, corrente da qual fizeram parte Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, defende que o homem constitui sua essência ao longo de sua existência, de maneira que não existe uma essência que o determine. A atitude existencial, algo como um estalo ou um escangalho das sinapses, ao mesmo tempo em que provoca no homem uma sensação de desorientação e certa confusão face à aparente falta de sentido e o absurdo do mundo, determina os sentimentos, as ações e a vivência do indivíduo. A grosso modo, é como se ao longo de nossa existência fossemos colecionando experiências, criando a nós mesmos, de modo que só com a morte atingimos nossa completude. Não à toa, a ênfase do existencialismo está na responsabilidade do homem sobre seu destino e no seu livre arbítrio.
Mas deixemos a nesga de erudição para lá: falemos de Antonio Candido! Ontem completou-se uma semana da morte do grande ensaísta e crítico literário brasileiro. Candido atingiu sua completude; escreveu as últimas páginas de seu livro. Cabe a nós, agora, a leitura de sua obra, a inveja de sua essência.
Até aí, nada demais! Contudo, o curioso mesmo foi tê-lo encontrado em meio aos entretenimentos e fofocas de celebridades em um site de notícias. Talvez um provável descuido; desses que fugiram às exceções e tornaram-se regra na malfadada indústria da informação.
Singular ou não, o fato é que me lembrei de Machado e por fim achei que talvez tudo não passasse de uma predestinação irônica, dessas que hora ou outra acometem seres supostamente alheios às futilidades efêmeras.
Explico-me: há tempos escrevi sobre a indignação póstuma de Machado. Ocorre-me agora que Brás Cubas, figura culta e refinada, porém voluntariosa, não só daria um piparotes em seu criador, mas também usaria de muita ironia ao vê-lo em meio a Madonna e a Mulher Melancia (ambas já recolhidas ao esquecimento) em uma banca de jornal.
Melancia, na capa de uma publicação especializada em estimular carpos, metacarpos e falantes de marmanjos, exibia o derrière e pernas em V invertido. Cubas não faria por menos! É certo que tripudiaria da página leve em que Machado traz de arrasto a Eneida e assola o verso virgiliano de modo a fazer com que virumque ignore a arma, degenerando-se em Vir, no intuito de sugestionar seu pai, que decide apresentá-lo a Virgília (Perdeu-se leitor? Eis pura provocação para que voltes às páginas de Memórias Póstumas!).
Na época, lembro-me que ao contemplar Machado exposto entre os exuberantes seios de Madona e o buzanfã da Mulher Melancia, a válvula de escape ao risível e ao ridículo veio-me de alguns versos de Baby grafados na capa de uma outra revista: lá vem o Brasil descendo a ladeira. À época Baby ainda não era do Brasil e este descia a ladeira na bola, no samba, na sola e ainda não lançava o salto em direção aos nossos sacrossantos traseiros!
Enfim, com Candido deu-se algo parecido: colocaram-no entre uma ‘bbb’ (com minúsculas mesmo!) que reclamara do reclinar de uma poltrona de avião e uma reportagem que versava sobre característica constitutiva do homem: o fingimento; no caso, homens que fingiam orgasmos. Vá lá, é certo que Candido tenha dado algumas remexidas post-mortem.
O fato é que Candido tornou-se pop; em vida, referência, admirado nos meios acadêmico e intelectual, morto, adentrou as revistas de celebridades e ao longo da semana disputou espaço com as fofocas. Contudo, nas redes sociais trouxe algum respiro para o universo facebookiano, lugar-comum de comentários repletos de clichês, preconceitos e uma boa dose de iracúndia.
Enquanto escrevo dou uma olhadela nas últimas notícias: figuras do meio político-policial de Brasília vêm a público afirmar que possíveis delações hão de marcar o fim da República, o que só prova que vivem em um mundo de fantasia, à parte. A lama é tanta que não vejo outra alternativa a não ser recolher-me também em meu mundo. Por fim, plagiando Cícero, se ao lado da biblioteca houver um jardim, nada me faltará! 

 Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/

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