Às
vezes, escrevo durante as horas mortas. Desta vez, porém, a caneta não estava à
mão e o frio me incomodava um pouco, de modo que, respeitosamente, afastei o
gato para o lado, virei-me e pus-me a pensar no que lera durante o dia.
De
pronto, me veio ao espírito o tal do respeito e, num átimo, lembrei-me dos
gregos e sua indelével mitologia. Olhei para o gato e disse: “Bem, Afrodite
remete-nos ao amor, Apolo à beleza, Atena e Ares à guerra, Ártemis à caça...” E
o respeito? - perguntei-lhe. Sonolento, ele se virou para o lado e continuou a
dormir. Eu, desperto, sabia a resposta.
De
fato, segundo a mitologia, herdamos um pouco das paixões e ódios dos deuses,
não por outra razão os mitos nos auxiliam na compreensão das relações humanas
e, por que não, são a chave para que melhor entendamos o mundo a partir desse
nosso ponto de vista analítico afeito a esmiuçar tudo o que encontra? As
peripécias dos deuses e semideuses, suas batalhas heroicas e seus enfrentamentos,
revelam muito dos meandros do espírito humano. De certo modo, vá lá, somos heróis
e deuses de nossa própria história. Mas e o respeito? Bem, não há deus que o
represente.
O
único homem conhecido por sua respeitabilidade foi Euphemus, um dos filhos de
Poseidon, que, acreditem, tal como o Cristo, tinha o poder de andar sobre as
águas e transmitia bons exemplos àqueles que transitavam à sua volta. Habitante
da Fócida, região onde jaz o Parnassus, Euphemus
se junta aos Argonautas e torna-se timoneiro do navio. Ao passarem pelo
Mediterrâneo, Triton quis presenteá-los. Os Argonautas receberam ouro e prata,
mas, chegada a vez de Euphemus, não sobrou nada além de um torrão de terra, que
Euphemus aceitou. Paro a lenda por aqui, você, leitor, se quiser saber o final
da história que vá atrás!
Agora
é preciso que eu ligue os pontos, uma vez que meu gato caiu em sono profundo,
certo do respeito que recebe, deixando-nos, você e eu, a entabularmos essa boa
prosa.
Pois
bem, o fato em si é o caso da professora Marcia Friggi, de Santa Catarina,
agredida verbal e fisicamente por um aluno de 15 anos em sala de aula. Veja,
leitor, o torrão que coube a Marcia. Li diferentes matérias a respeito e,
confesso, até mesmo a imprensa, que hora ou outra produz reportagens sobre o
descanso em que anda a educação, foi unânime ao tratar o caso da Sra. Friggi.
A
agressão, é preciso registrar, só veio a público porque a Sra. Friggi relatou-a
em sua rede social. Isto posto, os compartilhamentos e comentários foram
exponenciais. Ato contínuo, jornais e revistas trataram do assunto. Todas, sem
qualquer aprofundamento da questão, limitaram-se ao relato do episódio em
escala menor àquela que seria dispensada ao jogador que perde ou faz o gol em
momento decisivo.
Ou
seja, a Sra. Friggi, por seus anos de dedicação ao magistério só ganhou o mero e
dolorido torrão que lhe fora dado por seu aluno! E ela que decida o que fazer
com ele! Euphemus jogou-o ao mar, razão pela qual é citado como o ancestral de
Battus, fundador de Cirene. O torrão da Sra. Friggi, lamento dizer, úmido, vai
se misturar à lama quotidiana que verte em nosso país e será dignamente
esquecido. Sequer a imprensa quis saber de que material ele é feito. O site da UOL, sabidamente ávido em criar
títulos sensacionalistas, trouxe o seguinte: “Professora de SC diz que foi agredida por aluno de 15
anos” (o grifo é meu). Hoje, porém, como dedica-se à venda de produtos e
ideias, comentou o linchamento virtual imposto a Sra. Friggi.
Ora,
o pessoal da análise do discurso, que não é bobo nem nada, sabe do que falo. A
partir do momento que coloco esse “diz”, materializo a dúvida na notícia. A
foto em que a Professora aparece com o supercílio cortado e o sangue escorrendo
rosto abaixo pode muito bem ter sido resultado de um encontro acidental com uma
porta qualquer, de modo que a manchete da UOL relativiza o óbvio. Vivemos a
época dos fatos alternativos, da pós-verdade, por isso, mesmo diante do fato
verídico, teima-se em instalar a dúvida em prol de uma ideologia sub-reptícia,
ignorando o fato de que a imprensa deve veicular notícias, fatos, e
analisá-los.
Em
tempos de polarizações, a Sra. Friggi foi obrigada a tragar boa dose de cicuta.
Explico-me: não bastasse a agressão verbal, física e psicológica, a Sra. Friggi
foi impelida a responder por seu posicionamento político. Parece-me que seu
depoimento público, no qual diz sentir-se dilacerada com o ocorrido, foi muito
cru, muito verdadeiro, careceu de verniz literário, enfim, um tom folhetinesco,
dramático. Não, leitor, não lanço mão da ironia. É o que penso. Fato é que a
Sra. Friggi não chegou a enternecer a massa. Parte dela, cansada ou obtusa -
não sei – fez uso de suas próprias palavras em publicações anteriores para
condená-la, como se tivesse ela criado o monstro que a atacou.
No
mais, visto que não há deus ou semideus que represente o respeito, falemos ainda
do torrão oferecido a Sra. Friggi, que, lamentavelmente, em estado de mutação,
dilui-se com a lama da canaille, que
é indiferente à educação; a lama da imprensa, quotidianamente parcial em suas
publicações; a lama produzida pela sociedade, que acha lógico um adolescente
conduzir um carro e eleger bandidos, mas não responder por seus atos; a lama
gerada pelos pais, que acham “natural” responsabilizar a escola pela educação
de seus filhos, com menosprezo do conhecimento
e la nave va. Não sou expertise em educação, mas acho que a
equação que resultou nas pedradas lançadas na Sra. Friggi, por uma sociedade e
um adolescente bárbaro e perverso, começa por aí.
Publicado originalmente em http://z1portal.com.br/category/miscellanea/
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